O crédito direcionado, aquele que é administrado por bancos públicos e possui subsídios importantes envolvidos na sua intermediação, ainda é bastante relevante no mercado de crédito brasileiro. Para ilustrar, como ensinamos em nosso Curso de Análise de Conjuntura usando o R, vamos coletar os dados referentes a crédito diretamente do Banco Central com o R.
Para isso, nós utilizamos o pacote rbcb, como abaixo.
No código acima, nós estamos basicamente pegando os dados do crédito livre, aquele que é intermediado sem subsídios e o crédito direcionado que falamos acima. A partir das séries coletadas, nós podemos criar as taxas de crédito livre e de crédito direcionado a partir do estoque total de crédito. Com efeito, podemos gerar o gráfico abaixo.
A despeito da mudança na estrutura da taxa de juros que regula os empréstimos do BNDES, parte importante do estoque de crédito direcionado, o mesmo ainda responde por mais de 40% do total de crédito no Brasil.
Os últimos anos marcaram uma expansão muito grande do crédito público no país. Em particular, os empréstimos associados ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Como temos visto em horário nobre, a concessão desse tipo de crédito não envolve, necessariamente, uma decisão técnica, mas por vezes questões políticas. Além disso, a ele estão associadas taxas de juros subsidiadas, que não respondem a mudanças na taxa básica de juros. Com efeito, o aumento da sua participação no crédito total acaba por entupir o canal de crédito, fazendo com que o Banco Central tenha que aumentar mais os juros para atingir a inflação.
Na 32ª edição do Clube do Código, nós atualizamos um breve exercício que relaciona a expansão do crédito público à perda de eficiência da política monetária brasileira publicado no Blog da Análise Macro.
Crédito vs. Juros Reais
No exercício que publicamos no Blog da Análise Macro, nós decompomos a parte do crédito que reage à taxa de juros e outra que não reage. Para tal, nos baseamos na equação de de Bolle (2010):
(1)
onde é a variação acumulada em 12 meses do estoque de crédito e é o juro real obtido pela taxa Selic deflacionada pela expectativa de inflação para os próximos 12 meses. Desse modo, temos o crédito decomposto em duas partes: uma que é sensível aos juros reais e outro que não é (a constante). Abaixo, pegamos as séries que vamos utilizar para estimar (1) e tratamos as mesmas. A amostra que utilizaremos vai de janeiro de 2003 a abril de 2017.
As séries do juro real e da variação do crédito não são estacionárias em nível, como pode ser visto no apêndice do exercício. Com efeito, ao estimar (1) podemos incorrer em resultados espúrios. Para ilustrar, considere o exposto em Verbeek (2012). Suponha duas variáveis aleatórias e caracterizadas por um passeio aleatório. Podemos representá-las como
(2)
onde . Nesses termos, se estimamos o modelo dado por
(3)
teremos, de modo geral, um relativamente alto e um estatisticamente significativo. Esse tipo de situação é classificada na literatura como regressão espúria, isto é, o caso onde duas séries não estacionárias estão relacionadas apenas pelo fato de ambas conterem uma tendência.
Uma exceção ao caso de regressão espúria vem à tona quando dois processos aleatórios compartilham a mesma tendência estocástica (Enders, 2009). Para ilustrar, considere, como Verbeek (2012), duas séries integradas de ordem 1, e , como as vistas em (2) e suponha que exista uma relação linear entre elas, dada por . Isso implica no fato de existir algum valor de tal que seja integrado de ordem zero, mesmo com as séries originais sendo ambas não estacionárias. Nesses casos, diz-se que as séries são cointegradas e as mesmas compartilham a mesma tendência.
Sendo um pouco mais formal, com base em Pfaff (2008), a ideia por trás do conceito de cointegração é encontrar uma combinação linear entre duas variáveis de tal sorte que isso leve a uma variável de menor ordem de integração. Isto é, os elementos do vetor são ditos cointegrados de ordem , denominado por , se todos os elementos de são e o vetor existe tal que , onde . O vetor é então chamado cointegrante. Nesse contexto, se o juro real e a variação do crédito forem cointegradas, a regressão de uma contra a outra não será espúria, de modo que podemos confiar nos coeficientes estimados.
Estimando o modelo para a amostra total
Como mostramos no exercício do Clube do Código, esse parece ser o caso. Desse modo, podemos proceder a estimação de (1) por Mínimos Quadrados Ordinários. A tabela abaixo traz os dados, considerando toda a amostra disponível.
Dependent variable:
dcredito
juroreal
-0.093
(0.174)
Constant
17.181***
(1.417)
Observations
172
R2
0.002
Adjusted R2
-0.004
Residual Std. Error
8.102 (df = 170)
F Statistic
0.283 (df = 1; 170)
Note:
*p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01
Observe que o é próximo a zero. O resultado é frustrante, não é mesmo? Ao rodar a regressão para todo o período, nada se pode inferir sobre o comportamento da variação do crédito. Diante disso, e tendo em vista o avanço do crédito público que ilustramos acima, rodamos na seção seguinte a regressão até 2008, apenas para entender se os resultados frustrantes se manteriam ou, de outra forma, conseguiríamos um quadro melhor.
Estimando o modelo com uma subamostra
Abaixo, então, estimamos (1) para uma subamostra, isto é, de janeiro de 2003 a dezembro de 2008. A tabela a seguir resume os resultados.
Dependent variable:
dcredito
juroreal
-1.824***
(0.224)
Constant
39.519***
(2.425)
Observations
72
R2
0.486
Adjusted R2
0.479
Residual Std. Error
5.386 (df = 70)
F Statistic
66.160*** (df = 1; 70)
Note:
*p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01
Os resultados são bem distintos. Observe que o aumento de um ponto percentual no juro real ex-ante reduz a variação do crédito em 1,82 p.p., o que é condizente com a teoria econômica. Em outras palavras, o aumento do crédito público, notadamente via a expansão do BNDES, causou uma perda de eficiência da política monetária, como podemos ver pela estimação de (1) para toda a amostra disponível.
Rolling Regression
Para tornar a nossa compreensão sobre a relação entre variação do crédito total e juros reais melhor, uma última etapa do exercício compreende fazer a estimação recursiva, de modo a captar a evolução da relação. Começamos com uma amostra contendo 48 observações e vamos acrescentando cada nova observação à estimação. Com efeito, temos a evolução tanto da constante quanto dos juros reais. Mostramos abaixo o p-valor dos mesmos, de modo que o leitor passa a ter uma noção sobre quando os juros reais passaram a não se mais estatisticamente significativos.
A evolução do p-valor mostra que a partir do final de 2013 o coeficiente dos juros reais passa a não ser mais estatisticamente significativo para explicar a variação do crédito total em 12 meses. Em outras palavras, temos uma evidência de que o aumento da participação do crédito público no crédito total reduziu a eficiência da política monetária. Ou, em outras palavras, o canal de crédito passou a responder menos a mudanças na taxa básica de juros.
Discussões Finais
Certamente, esse exercício simples não deve ser encarada como evidência definitiva, mas pode motivar estudos mais elaborados sobre o assunto. Dada a relevância do tema, é importante que mais e mais economistas se envolvam na questão. E, para terminar, uma provocação: o seu economista favorito, que defendeu a expansão do BNDES nos últimos anos, o que pensa sobre o aumento de juros para controlar a inflação? Mais BNDES para alguns implica, como vimos, em mais juros para todos.
Tenho sido repetitivo em minhas apresentações sobre o impacto dos empréstimos do BNDES na economia brasileira. De forma geral, mostro que a despeito dos quase R$ 500 bilhões que o Tesouro colocou no banco nos últimos anos, a taxa de investimento da economia brasileira não aumentou; ao contrário, diminuiu entre 2008 e 2014. Entender as razões pelas quais o investimento pouco reagiu ao aumento do crédito público passa pela compreensão do processo de crescimento econômico. Você pode saber sobre isso lendo o livro do professor Acemoglu. Mas o aumento do crédito público vis a vis o crédito privado gera um pouco mais de distorções sobre a economia. A concessão desse tipo de crédito não envolve, necessariamente, uma decisão técnica, mas por vezes questões políticas. Além disso, a ele estão associadas taxas de juros subsidiadas, que não respondem a mudanças na taxa básica de juros. Com efeito, o aumento da sua participação no crédito total acaba por "entupir" o canal de crédito, fazendo com que o Banco Central tenha que aumentar mais os juros para atingir a inflação. Nesse post vamos fazer um breve exercício que relaciona a expansão do crédito público à perda de eficiência da política monetária brasileira.
Avanço do endividamento público para financiar o BNDES.
Para fazer isso, achei que seria interessante, em primeiro lugar, decompor a parte do crédito que reage a taxa de juros e outra que não reage. Para tal, tomei emprestada a equação de Bolle (2010), da forma que segue:
(1)
A equação acima relaciona a variação em 12 meses do crédito total da economia a uma constante e aos juros reais, dados pela diferença entre a taxa básica de juros (Selic) e as expectativas de inflação 12 meses à frente. Desse modo, temos o crédito decomposto em duas partes: uma que é sensível aos juros reais e outro que não é (a constante). Os gráficos do crédito e dos juros reais são postos abaixo.
Antes de rodar a regressão, temos que ver se as séries são estacionárias. Pelos gráficos acima, parece que não são. Para confirmar, fiz uso do teste ADF Sequencial, conforme Pfaff (2008). As tabelas para a equação de teste com drift e tendência, com tendência e sem nenhum dos dois são postas abaixo.
Teste ADF com drift e tendência
dCred
Juros Reais
1pct
5pct
10pct
tau3
-1.927
-2.716
-3.990
-3.430
-3.130
phi2
3.098
2.519
6.220
4.750
4.070
phi3
4.641
3.778
8.430
6.490
5.470
Teste ADF com drift
dCred
Juros Reais
1pct
5pct
10pct
tau2
-1.156
-1.428
-3.460
-2.880
-2.570
phi1
0.674
1.020
6.520
4.630
3.810
Teste ADF sem drift e tendência
dCred
Juros Reais
1pct
5pct
10pct
tau1
-0.359
-0.662
-2.580
-1.950
-1.620
Observa-se que nas três equações do teste ADF não podemos rejeitar a hipótese nula de existência de raiz unitária. Faz-se, desse modo, o mesmo teste para a primeira diferença das séries, chegando à conclusão que ambas são integradas de ordem 1. Com efeito, podemos prosseguir com o exercício, tendo em mente a possibilidade de cointegração entre as séries.
Regressão para todo o intervalo da amostra
Em uma primeira regressão, pegamos todo o período da amostra, que vai de janeiro de 2003 a abril de 2015. Os resultados são postos abaixo.
Regressão para o período total
Dependent variable:
dCred
Juros Reais
-0.060
(0.123)
Constante
19.174***
(1.070)
Observations
148
R2
0.002
Adjusted R2
-0.005
Residual Std. Error
6.081 (df = 146)
F Statistic
0.239 (df = 1; 146)
Note:
*p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01
O resultado é frustrante, não é mesmo? Ao rodar a regressão para todo o período, nada se pode inferir sobre o comportamento da variação do crédito. Diante disso, e tendo em vista o avanço do crédito público, uma opção que pensei foi rodar a regressão até 2008, apenas para entender se os resultados frustrantes se manteriam ou, de outra forma, conseguiria um quadro melhor.
O mercado de crédito antes da "marolinha"...
A saída da regressão é posta abaixo:
Regressão entre 2003M01 e 2008M09
Dependent variable:
dCred
Juros Reais
-1.600***
(0.201)
Constante
37.779***
(2.319)
Observations
69
R2
0.487
Adjusted R2
0.479
Residual Std. Error
5.175 (df = 67)
F Statistic
63.622*** (df = 1; 67)
Note:
*p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01
Bem melhor, não? Antes de qualquer coisa, fazemos o teste ADF Sequencial, conforme Pfaff (2008), sobre os resíduos, conforme a tabela abaixo. Podemos rejeitar a hipótese nula, dada a comparação da estatística tau3 com os valores críticos. Isto é, os resíduos são estacionários e como as séries são integradas de ordem 1, temos evidências de que a variação do crédito e os juros reais são cointegrados, de modo que a regressão não é espúria. Você pode ver mais sobre isso em Enders (2009).
Teste ADF com drift e tendência
Resíduos
1pct
5pct
10pct
tau3
-4.202
-4.040
-3.450
-3.150
phi2
7.115
6.500
4.880
4.160
phi3
9.085
8.730
6.490
5.470
Nesses termos, observa-se que para o período entre janeiro de 2003 a setembro de 2008, a variação do crédito em 12 meses pode ser explicada pela constante - a parte insensível aos juros - e pelos juros reais. Ademais, o coeficiente dos juros reais é negativo, indicando que um aumento deste causa menor crescimento no crédito total. A parte insensível aos juros pode ser, desse modo, interpretada como a parte do crédito público, enquanto a parte que responde a juros reais é representada pelo crédito privado.
Ora, o que aconteceu com a relação entre variação do crédito total e juros reais?
De 2008 para cá, como podemos inferir a partir do primeiro gráfico, o BNDES foi bastante capitalizado pelo Tesouro. Além disso, o governo passou a incentivar tanto o Banco do Brasil quanto a Caixa Econômica Federal a aumentarem os empréstimos à pessoa física. Isso gerou mudança no mercado de crédito? Para ver isso, colocamos os dois gráficos a seguir, que mostram o crédito total dividido por tipo de controle e essa divisão em relação ao PIB.
O crédito público não apenas avançou de 2008 para cá, como acabou tomando a dianteira do crédito privado. Em outros termos, como o crédito hoje tem grande participação de instituições estatais, é possível entender melhor os resultados daquela regressão para o período todo da nossa amostra. Isto porque, o crédito público é insensível aos juros reais.
Para tornar a nossa compreensão sobre a relação entre variação do crédito total e juros reais melhor, uma última etapa do exercício compreende fazer a estimação recursiva, de modo a captar a evolução da relação. Começamos com uma amostra contendo 48 observações e vamos acrescentando cada nova observação à estimação. Com efeito, temos a evolução tanto da constante quanto dos juros reais. Mostramos abaixo o p-valor dos mesmos, de modo que o leitor passa a ter uma noção sobre quando os juros reais passaram a não se mais estatisticamente significativos.
A evolução do p-valor mostra que a partir de janeiro de 2014 o coeficiente dos juros reais passa a não ser mais estatisticamente significativo para explicar a variação do crédito total em 12 meses. Em outras palavras, esse exercício simples gera uma reflexão. Será que o aumento da participação do crédito público no crédito total reduziu a eficiência da política monetária? Ou, em outras palavras, será que o canal de crédito passou a responder menos a mudanças na taxa básica de juros? São questões importantes que estão colocadas e devem ser avaliadas com bastante cuidado.
A simplicidade do que fiz aqui não pode, claro, ser encarada como evidência definitiva, mas pode motivar estudos mais elaborados sobre o assunto. Dada a relevância do tema, acho importante que mais e mais economistas se envolvam na questão. E, para terminar, uma provocação: o seu economista favorito, que defendeu a expansão do BNDES nos últimos anos, o que pensa sobre o aumento de juros atual para controlar a inflação? Afinal, os juros saíram de 7,25% para 13,75% a.a. em termos nominais e a inflação de preços livres continua próxima a 7% a.a. Será que o crédito público que o seu economista favorito tanto defendeu tem algo a ver com isso? Não sei, deixo a resposta para você pensar... 🙂