Qual a relação entre benefícios sociais e a taxa de participação do mercado de trabalho?

Introdução

A compreensão do mercado de trabalho brasileiro no período pós-pandemia exige um olhar que transcenda a simples observação da taxa de desocupação. Em exercícios anteriores, identificamos que a recente retração do desemprego foi impulsionada majoritariamente pelo crescimento da população ocupada. Contudo, esse fenômeno ocorreu concomitantemente a uma expansão da Força de Trabalho (População Economicamente Ativa - PEA) que, embora positiva, revelou-se insuficiente para recuperar a tendência pré-existente.

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O ponto focal desta discussão reside na taxa de participação — a razão entre a força de trabalho e a população em idade ativa (PIA). Observamos que, apesar da recuperação do emprego, a taxa de participação permanece em patamares estruturalmente inferiores aos verificados em 2019. Uma simulação contrafactual simples nos revela a magnitude desse hiato: caso a taxa de participação atual retornasse aos níveis pré-pandemia, a taxa de desocupação observada seria significativamente superior à vigente.

 

Ao decompormos os dados demográficos, notamos que o crescimento da PEA não acompanhou a necessidade de cobertura das perdas ocorridas durante a crise sanitária. Mesmo considerando o arrefecimento no ímpeto de crescimento da PIA, reflexo do fim do bônus demográfico, a força de trabalho não demonstrou a elasticidade esperada. Este cenário nos impõe um questionamento estrutural sobre os determinantes da oferta de trabalho no Brasil contemporâneo.

Motivação

Diante da persistência de uma taxa de participação deprimida, surge a necessidade de investigar as causas fundamentais dessa “não devolução” da PEA aos seus patamares potenciais. A teoria econômica nos sugere que a decisão de ofertar trabalho é influenciada pelo custo de oportunidade do tempo e pelo salário de reserva.

Neste contexto, propomos investigar três vetores principais que podem estar afetando a decisão dos agentes econômicos: o nível de atividade econômica, que dita a demanda por trabalho; o rendimento médio real, que sinaliza o retorno do trabalho; e, crucialmente, o volume de benefícios sociais. A hipótese subjacente é que transferências de renda robustas podem elevar o salário de reserva, desincentivando a entrada ou a permanência na força de trabalho, especialmente em estratos de menor qualificação.

Para testar essa hipótese, desenvolvemos um exercício empírico utilizando a linguagem de programação R. O objetivo é construir um arcabouço de modelagem acessível, utilizando dados públicos e ferramentas open source, inspirado no Estudo Especial desenvolvido pelo economista José Márcio Camargo, que avalia o impacto das transferências na taxa de participação e no desemprego.

Metodologia e Dados

A estratégia empírica adotada consiste na estimação de um modelo de Regressão Linear Múltipla, com o objetivo de explicar as variações na taxa de participação. O período de análise compreende dados trimestrais que se estendem do quarto trimestre de 2013 até o terceiro trimestre de 2025.

As variáveis foram selecionadas para capturar os determinantes clássicos da oferta de trabalho e choques exógenos. Como variável dependente, utilizamos a Taxa de Participação. As variáveis explicativas incluem:

1. Consumo das Famílias (CNT): Utilizado como proxy para a atividade econômica e demanda agregada.

2. Rendimento Médio Efetivo Real: Representando o retorno esperado do trabalho.

3. Benefícios Sociais: Construída a partir da soma dos valores do Bolsa Família, Auxílio Emergencial e Auxílio Brasil no período de vigência. Esta variável foi normalizada pela divisão pelo salário mínimo, criando uma métrica de “taxa de reposição” ou atratividade relativa do benefício frente ao piso salarial nacional.

4. Dummy Covid: Uma variável binária para capturar o choque estrutural da pandemia.

Para garantir a robustez das estimativas e evitar problemas de raiz unitária ou a modelagem de constantes estruturais que poderiam enviesar a análise de curto prazo, optamos por trabalhar com as variáveis centradas na média (desvios em relação à média), com exceção da dummy de controle. Na especificação do modelo no R (lm(formula = tp_dev ~ -1 + ...)), removemos o intercepto, forçando a regressão a explicar as flutuações em torno da média das variáveis. Adicionalmente, aplicamos uma correção para erros-padrão robustos (HAC - Heteroskedasticity and Autocorrelation Consistent), mitigando potenciais problemas de heterocedasticidade nos resíduos.

Gráfico de linha verde mostrando a série histórica da Taxa de Participação no Brasil (com ajuste sazonal) entre 2013 e 2025. O gráfico evidencia uma estabilidade em torno de 62% até 2019, seguida por uma queda abrupta vertical em 2020 devido à pandemia. A recuperação subsequente mostra uma tendência de alta, porém o nível final em 2025 permanece visualmente abaixo do pico anterior à crise sanitária. Gráfico de linha azul escura exibindo a variação interanual (em pontos percentuais) da Taxa de Participação. Destaca-se uma volatilidade extrema durante a pandemia, com um vale profundo próximo a -5,00 p.p. em 2020, seguido por um pico de recuperação ("efeito base") superior a 2,50 p.p. em 2021. Nos trimestres mais recentes (2024-2025), a variação converge para próximo de zero.

Gráfico de linha laranja representando a variação acumulada em 12 meses do Rendimento Médio Real. A série apresenta flutuações significativas, com destaque para uma queda acentuada (vale negativo) entre 2021 e 2022, indicando perda de poder de compra, seguida por uma recuperação para o terreno positivo no período final da amostra (2023-2025). Gráfico de linha azul representando a variação acumulada em 12 meses do Consumo das Famílias. O gráfico ilustra os ciclos econômicos recentes: a recessão de 2015-2016 (valores negativos), a recuperação subsequente, o choque da pandemia em 2020 e o crescimento robusto observado no período pós-2021, servindo como proxy para a atividade econômica. Gráfico de linha vermelha ilustrando a evolução da razão entre o valor médio dos Benefícios Sociais e o Salário Mínimo de 2004 a 2026. A linha permanece estável e baixa (abaixo de 0,3%) por quase duas décadas. Observa-se um pico massivo e temporário em 2020 (Auxílio Emergencial), seguido por uma mudança estrutural a partir de 2022, onde a linha se estabiliza em um novo patamar elevado (próximo a 0,5%), indicando que os benefícios passaram a representar uma fatia maior em relação ao salário mínimo.

Observação: Este estudo se baseia integralmente na abordagem apresentada em “Impacto das transferências na taxa de participação e no desemprego”, disponível em: https://static.poder360.com.br/2024/09/Impacto-das-transferencias-na-taxa-de-participacao-e-no-desemprego-jose-marcio-camargo.pdf

Resultados

A análise econométrica revelou resultados estatisticamente significantes e alinhados com a intuição macroeconômica, embora com algumas nuances importantes sobre o comportamento da renda. O modelo apresentou um elevado poder explicativo, com um R-quadrado de 0,846, indicando que as variáveis selecionadas capturam grande parte da variância da taxa de participação no período. O teste de Ljung-Box confirmou a ausência de autocorrelação serial nos resíduos (p-valor de 0,95), validando a especificação dinâmica do modelo.

Gráfico do tipo Forest Plot exibindo os coeficientes da regressão linear sobre a taxa de participação. O gráfico mostra um ponto central para a estimativa e barras horizontais representando o intervalo de confiança de 95% com correção de Newey-West. A variável "Benefícios Sociais" apresenta um coeficiente negativo significativo, indicando impacto redutor na participação. "Consumo" tem impacto positivo, enquanto "Rendimento Real" e "Dummy Covid" apresentam impactos negativos.

A variável de interesse central, os benefícios sociais (sm_bs_dev), apresentou um coeficiente negativo (-3.52) e estatisticamente significante a 1%. Este resultado corrobora a hipótese de que o aumento das transferências de renda, quando comparadas ao salário mínimo, exerce uma pressão baixista sobre a taxa de participação. Economicamente, isso sugere uma elevação do salário de reserva: à medida que a renda não-trabalho aumenta, o indivíduo marginal exige um salário maior para ingressar na força de trabalho, optando, em alguns casos, pela inatividade.

A atividade econômica, capturada pelo consumo das famílias (consumo_dev), exibiu uma correlação positiva com a taxa de participação. Este comportamento é pró-cíclico e esperado: em momentos de maior aquecimento econômico e consumo, a probabilidade de encontrar emprego aumenta, incentivando o retorno das pessoas à força de trabalho (efeito “trabalhador desalentado” diminui).

Um resultado que merece atenção detalhada é o coeficiente negativo associado ao rendimento médio real (rendimento_dev). A teoria econômica clássica postula que o aumento dos salários gera dois efeitos: o efeito substituição (trabalhar mais pois o lazer ficou mais caro) e o efeito renda (trabalhar menos pois já se atingiu um nível de consumo desejado). O sinal negativo encontrado sugere que, nesta especificação e amostra, o efeito renda pode estar predominando, ou, alternativamente, captura a dinâmica anticíclica da oferta de trabalho em crises (o “efeito trabalhador adicional”, onde as famílias ofertam mais trabalho quando a renda principal cai). Contudo, dada a construção da variável em desvios, também pode indicar que os períodos de recuperação da taxa de participação recente coincidiram com níveis de renda real ainda deprimidos.

Por fim, a dummy da pandemia confirmou o choque negativo severo e exógeno sobre a participação, como amplamente documentado. Em suma, a evidência empírica aponta que a atual dinâmica do mercado de trabalho brasileiro não pode ser dissociada da política de transferência de renda. Embora socialmente necessárias, tais políticas geram desincentivos à oferta de trabalho que devem ser considerados na formulação de políticas públicas e na análise da sustentabilidade do crescimento econômico via fator trabalho.

Resultados da Regressão:

Call:
stats::lm(formula = tp_dev ~ -1 + sm_bs_dev + consumo_dev + rendimento_dev + 
    covid_dummy, data = df_modelagem)

Residuals:
    Min      1Q  Median      3Q     Max 
-0.9456 -0.0641  0.2995  0.4912  1.8408 

Coefficients:
               Estimate Std. Error t value Pr(>|t|)    
sm_bs_dev      -3.52859    0.43963  -8.026 3.70e-10 ***
consumo_dev     0.09111    0.02711   3.360  0.00162 ** 
rendimento_dev -0.06092    0.02784  -2.188  0.03399 *  
covid_dummy    -1.20840    0.22574  -5.353 2.98e-06 ***
---
Signif. codes:  0 '***' 0.001 '**' 0.01 '*' 0.05 '.' 0.1 ' ' 1

Residual standard error: 0.5383 on 44 degrees of freedom
Multiple R-squared:  0.846, Adjusted R-squared:  0.832 
F-statistic: 60.43 on 4 and 44 DF,  p-value: < 2.2e-16

t test of coefficients:

                Estimate Std. Error t value  Pr(>|t|)    
sm_bs_dev      -3.528585   0.709683 -4.9721 1.057e-05 ***
consumo_dev     0.091107   0.036567  2.4915   0.01656 *  
rendimento_dev -0.060918   0.031612 -1.9270   0.06045 .  
covid_dummy    -1.208405   0.211389 -5.7165 8.794e-07 ***
---
Signif. codes:  0 '***' 0.001 '**' 0.01 '*' 0.05 '.' 0.1 ' ' 1

    Box-Ljung test

data:  stats::residuals(mod)
X-squared = 5.192, df = 12, p-value = 0.9513

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