Foi um encontro casual, desses rotineiros sob os quais me acostumei ao longo do tempo. Estava em uma livraria, na Sete de Setembro, em uma sexta-feira, como de costume para aliviar o stress. Ela igualmente. Eu folheava Dom Casmurro pela enésima vez, acompanhado que estava de um merlot argentino de boa estrutura, mas não tão encorpado como eu gostaria que fosse. Ela parecia entediada, com o olhar disperso, folheando o primeiro livro que saltava a sua frente. Ia de Freud a Paulo Coelho, como quem atravessa a Rio Branco sem olhar para o lado.
A leitura me prendeu até o ponto em que o cálice de merlot fez seus primeiros efeitos. Há, assim acredito, todo o tipo de bom bebedor. Eu não sou um deles. Gostaria de apreciar um ou dois ou três cálices do maldito, terminar algumas páginas do velho bruxo e ir para casa, ciente de que fiz um bom trabalho ao longo da semana. Seria simples se assim fosse.
Mas vá lá: seria chato pra burro também! A vida é tão curta que às vezes, algumas, não todas, me permito passar do terceiro cálice, em direção ao quarto, quinto e a quantos forem necessários para que a vida passe a fazer um pouco de sentido. Na maioria das vezes faz, em algumas nem tanto, e nessas vezes me ponho a chorar como se criança eu fosse. Mas são poucas, muito poucas. Ultimamente menos ainda. Depois de um longo inverno, eis que a sorte resolveu voltar a sorrir para mim.
Não digo que começara ali. Não leve o leitor para esse caminho. Não são as mulheres que tornam a vida (a minha ao menos) no prumo ou fora dele. As mulheres são jabuticabas maduras, doces e suculentas: seja nos bons ou nos maus momentos. O que dá sentido à vida - descobri há alguns meses (ou anos?) atrás no Arco do Teles - é a própria vida. As mulheres (para os homens e os homens para as mulheres) são apenas mero detalhe do sentido da vida. A mulher que chamou minha atenção, após o merlot ter me tirado a atenção de Bentinho e sua trupe, não começou a estória, nem a terminou: ela é o próprio enredo.
Loira com luzes, barriguinha feita, conjuntinho executivo preto listrado de cinza, pouca maquiagem, relógio impaciente, que a todo instante resolvia chamar a atenção da pobre mulher. Maldita seja a espera pelo homem que se atrasa! Quase não se conformava a coitada. Seus olhos castanhos maduros eram fogo puro diante da indelicadeza de seu amante (?).
Diante de tamanha ebulição fervorosa que urgia de seu corpo, nada mais me prendeu a atenção. Adeus Machado, fica para a próxima! Prontamente o técnico manda a mensagem para o banco e faz surgir uma substituição estratégica: sai o vinho, entra o chope. O objetivo é dar mais mobilidade ao meio-campo, na armação das jogadas. O vinho é um volante astuto, habilidoso, faz desarmes precisos e não dá carrinho por trás. Mas ainda assim é um maldito volante! Depois do terceiro cálice - para a maioria - a contenção é o seu maior objetivo. Já o chope, esse não: é do tipo meio-campo armador argentino. Aguenta firme os noventa minutos de jogo, roda todo o campo, é guerreiro, não te deixa na mão fácil. Só se, é claro, o jogo passar pela prorrogação e chegar ao décimo penálti - mas ai também nem o Conca, né amigo!
Troca feita, me dispus a olhar mais detidamente para a loira saltitante. Depois de 40 minutos olhando e folheando quase todos os livros das estantes a que teve acesso, resolveu sentar à mesa mais próxima. Jogou a carteira, o iphone e uma pequena (mesmo!) bolsa preta em cima da mesa e pediu uma vodka pura à garçonete. A mesma, sem jeito, disse que ali não havia vodka: apenas vinho, cerveja e chope. Ou seja, leitor, nada além dos 15%, pensou a loira aflita. Vá lá, dos males o pior, uma cerveja, o lugar afinal é o Rio de Janeiro e mesmo sendo frio, ainda é quente pra caralho. Tão logo a long neck veio, dois goles secos e sincronizados a deixaram para menos do meio. Voracidade, você e eu pensamos. Coisa linda de ser ver: só eu pensei, pois só eu vi uma mulher com tamanha voracidade sobre uma garrafa de cerveja.
Amargura, pensou a loira: ali sozinha, em uma sexta-feira à tarde. O desgraçado não retornou as ligações e as mensagens. Os homens são mesmo uns idiotas, lá estava eu concordando com ela. Não me culpe: sei como funciona a cabeça de um homem. Não sei nada de mulheres - nada mesmo, acredite! Mas por ser homem, sei exatamente pelo que ela passava naquele momento. A primeira hora chegou, enfim, e era tempo de agir. Fazia um favor à reputação masculina, oras!
- Ele deve ser mesmo um idiota para te deixar esperando assim, no meio de uma livraria! - me aproximei, com a tulipa de chope na mão. Posso? - apontei para a cadeira vazia a sua frente.
- Claro - olhou-me espatanda, mas interessada em meu palpite certeiro. Desculpa, mas o que você disse?
- Que o homem ao qual você estava esperando é um idiota - sentei-me calmamente, encarando seus olhos.
- Como você sabe que é um homem? - rendeu-se à brincadeira.
- Se fosse mulher, você teria deixado um recado na caixa de mensagens e já estaria a caminho de casa.
- Mas e se eu for lésbica? - disse em tom sério.
- Seria uma pena ou um achado - repliquei, já tendo como alvo o decote maliciosamente deixado aberto com menos de um centímetro do Pão de Acúcar mais perfeito que Deus inventou.
- Não entendi! - burburizou-se.
E riu-se depois de alguns segundos do meu silêncio. Nos apresentamos então. Ela Isabela, paulista, moradora do Rio há quatro anos. Eu, Mário, morador do Rio há 28 anos. Você, leitor, meu amigo há alguns minutos. Feitas as apresentações e alguns chopes mais tarde, me disse o real motivo de tanta tensão: um homem, casado, que prometeu encontrá-la ali para ir a um motel.
Tá, eu não imaginava que era casado: não é uma ciência exata, oras! Vá lá, o leitor não fique zangado. Muito mais relaxada, Isabela desligara o iphone e jogara todas as coisas na bolsa. Eu pedi a conta, nos beijamos, ela pegou um táxi, eu outro: agora assim eu podia ir embora com o sabor do dever cumprido.
No dia seguinte, o leitor adepto - ou ciente - da "teoria do meio-fio" já sabe o que aconteceu. O não ciente aguarde os próximos posts...