O local: um PUB bem transado na República, quase esquina com a Lima e Silva. Estava acompanhado da Isa, saboreando um Eisenbahn e ouvindo qualquer coisa da fraca banda que toca àquela hora. Um sei lá porque motivo o assunto virou Marx. Isa ainda remoia a nota baixa de dois trimestres atrás. Eu pouco ouvia, só pensava em onde iria naquela noite.
As mulheres, porém, não ligam se você não presta atenção ao que elas dizem. Elas só querem o eye contact, nada mais. E foi assim que tudo o mais começou. Na mesa ao lado haviam dois perdidos: um vestia uma calça rasgada, um all star preto tradicional e uma camisa do Che, algo como um uniforme na velha capital gaúcha. Já o outro estava à paisana, com bermuda, casaco e um tênis nike qualquer.
Marx foi um cara fora de série, sem sombra de dúvidas. Cento e poucos anos depois de sua morte ele ainda provoca a ira da mesa ao lado. Mas, nesse caso específico, a culpa foi minha, leitor amigo. Não notei que a Isa se enfureceu mais do que o normal e começou a falar coisas como redução do tempo de rotação do capital e capital fictício.
Nesse momento eu confesso que estava longe. Pensava em onde iria depois que cansasse do carinha que tocava mal e tentava cantar alguma coisa que não lembro. Nesse intervalo não percebi que o cara com a camisa do Che já estava trocando a maior idéia com a Isa sobre o que era capital fictício. Ele fazia mestrado em economia na UFRGS e, claro, era marxista. Afinal, quase todos nessa idade e nessas faculdades são marxistas. Curiosidade do destino: ele também era mineiro.
Quando, enfim, decidi partir para o Opinião curtir um pop-rock local, Isa me cutucou, me chamando para a conversa. Indagou-me sobre se o capitalismo contemporâneo estava ou não sob a lógica do capital fictício. Era uma pergunta retórica, claro. Ela só o fez por que o cara com a camisa do Che - cujo nome nem o leitor lembraria, muito menos eu - parecia ter dúvidas sobre o fato. Isa, então, de branca passou a vermelha de raiva: do cara e, claro, de mim. A essa altura eu pensava nos reforços que o Gigante não traria para a próxima temporada - de novo!
Isa e o cara com a camisa do Che acabaram saindo do livro 3 e voltando aos princípios: o livro 1 e a definição de valor. Nas entrelinhas Isa queria mesmo era dar uma aula ao carinha. Começaram então a definir valor, mais-valia e o processo de valorização do capital propriamente dito. A Isa explicava, o cara ouvia e eu mantive o keep alive ligado para o caso de precisarem de mim. Enquanto isso, admirava a bela safra de novas loiras que o Rio Grande estava produzindo.
Uma loirinha com luzes, 18 anos no máximo, aparentava um tédio insuportável a três mesas distantes de mim. Estava sentada com cinco amigas, comemorando o aniversário de uma delas. Pensei comigo: uma chiada bem dada ao pé do ouvido e estava tudo resolvido. Mas seria foda fazer isso com a Isa e, agora, também com o cara com a camisa do Che.
Eu sei que o leitor pensou o mesmo que eu. Seria uma troca justa: saia dali com a loirinha e a Isa ficaria com o Che. O keep alive que recebia, porém, era dúbio. Che e Isa defendiam de modo fervoroso seus pontos de vista. Ela tentando provar que o capitalismo, apesar de todos os problemas, era bastante funcional, dada a natureza humana. Che, porém, insistia em alguma coisa anarco-punk-meio-fora-de-moda. Dito isto, parti para um ataque suicída à gélida Rússia, digo à loirinha.
Como de praxe, esperei que ela fosse ao banheiro e lá rumei atrás. Chiei alguma coisa que não tenho nem idéia do que foi e ela sorriu. Perguntou-me, porém, da morena sentada comigo à mesa. Eu disse que ela estava com o Marx. Ela, sem ter a menor idéia do que eu havia dito, perguntou-me quem diabos era Marx. Eu disse, então, que era o cara com a camisa do Che. Ela deu mais um sorriso, eu chiei mais alguma coisa ao pé da bela orelha esquerda, trocamos um beijo apressado e telefone.
Voltei, enfim, para a mesa e lá continuava a discussão acalorado sobre alguma coisa com relação ao Capital. A loirinha e eu trocávamos olhares à distância e eu desliguei o keep alive em relação à conversa com o Che. Isa nem desconfiou porque, afinal, Marx é mesmo um cara fora de série que até hoje provoca discussões fervorosas. E foi nesse dia, sem mais nem menos, que eu quase virei marxista e coloquei uma camisa azul do Che.