Tempos difíceis para a República, leitor. Após a melhor conjuntura internacional desde o pós-guerra, vivenciada no período 2003-2007, o mundo entrou novamente em recessão. Nosso país, tido por atentos analistas estrangeiros e nacionais, como a “bola da vez” durante esse período de bonança, resolveu ceder à História e cometer os mesmos erros de sempre. Erradicamos a responsabilidade fiscal, usurpamos a autonomia do Banco Central e cedemos à tentação de incentivar consumo para garantir mais uma eleição. Resultado: o povo foi para a rua.
As revoltas de junho mostraram um povo que não se sente representado por partidos. Gente que é contra tudo isso que está ai. Uma massa de pessoas que poderia ser classificada como muitas coisas, menos como alienados. Eram muitos, com preferências políticas distintas. Queriam um país melhor, como no comercial da margarina. Então, por que o título, leitor?
Confesso que após tantos anos envolvido com discussões políticas e econômicas vi o ar de revolta das ruas com otimismo. Era e continua sendo muito claro para mim que o protesto de todos ali era por mais e não menos capitalismo. Ainda que alguns acreditem se tratar de nossa pequena revolução à esquerda do debate. Não é, porque a esquerda não tem projeto para as reivindicações que ali eram pleiteadas. Nem a direita, diga-se de passagem.
Como dito, há muitas reivindicações Brasil a fora. Algumas com mérito, como as que pedem mais saúde e educação básica. Outras sem sentido, como a que quer passe-livre. Não quero discutir os pormenores desses pleitos. Meus escritos nesse final de semana vão por outra direção.
As reivindicações de junho acabaram tomando julho, invadindo o inverno tropical brasileiro. Se era um protesto contra o padrão Fifa, como não recebeu atenção alguma dos políticos e partidos, virou um protesto maior: virou uma crítica contundente ao Estado brasileiro. Meu otimismo me leva a dizer que é um protesto ao jeito de se gastar dinheiro público. À forma como as preferências dos cidadãos são erroneamente reveladas nas eleições. Mais estádios para quem, afinal? Com ingressos tão salgados, após bilhões de impostos gastos, o povo parece que percebeu quem é o pato da mesa.
E após esse frenesi cívico, os manifestantes resolveram engrossar o caldo. Como não receberam atenção de políticos e partidos – a não ser por meia dúzia de propostas toscas, vindas da Praça dos Três Poderes – os manifestantes resolveram ir à casa do governador. Sim, foram ao Leblon, visitar Sergio Cabral. O problema, leitor, é que uma coisa é protestar na Rio Branco, na Presidente Vargas ou na Avenida Brasil. Outra, completamente distinta, é protestar na Ataulfo de Paiva. O problema de protestar no Leblon é que por lá há o morador do Leblon.
E aqui peço desculpas a quem não é do Rio. As duas primeiras ruas que citei ficam na região central da cidade. Foram palco daquela quinta-feira homérica, onde segundo estimativas da Coppe/UFRJ havia cerca de 700 mil pessoas. Gente que saiu da Candelária, aquela mesma da chacina que faz aniversário esse mês, e foi até a prefeitura ser recebida pela tropa de choque, pelo Bope e por policiais militares.
Já no dia 17/07 a manifestação ocorreu no Leblon, um dos metros-quadrados mais caros da cidade. Lá foram protestar em frente à casa do governador. No Rio, além da crítica contra tudo isto que está aí, há uma peculiaridade: as relações espúrias entre meia dúzia de empresários e o governo do estado. No Rio houve manifestação até no casamento da neta de um dos maiores empresários do setor de transporte. Carioca que se prese, afinal, gosta de protestar contra bailes aristocráticos...
Após as manifestações em frente à casa do governador, o protesto seguiu pelas ruas do bairro. Lojas, agências bancárias, pontos de ônibus, nada passou impune. A revolta pôs fogo nas ruas do Leblon. Ela causou medo aos moradores do Leblon. Atônitos diante de tanta violência, eles foram às ruas na sexta-feira seguinte pedir o que gostam de pedir nas manhãs de domingo: paz. Os moradores do Leblon querem paz, leitor.
E aqui me volto ao título. Ao longo de todo esse tempo discutindo e escrevendo sobre política e economia já ouvi um sem número de barbaridades. Mas a pior delas sempre vem daqueles que se acham melhores do que os outros. Daqueles que, por exemplo, culpam a Rede Globo por bestializar os mais humildes, com suas novelas e minisséries. Aqueles que querem, enfim, conscientizar os oprimidos.
Eu gostaria de ouvir esses iluminados agora: por que não vão ao Leblon? Por que não vão lá conscientizar os moradores do Leblon? Afinal, durante a onda de protestos que assolou o país nos últimos meses, onde estavam os moradores do Leblon? Estavam eles assistindo ao folhetim das nove? Não se deram conta dos protestos até que eles ultrapassassem Copacabana? Os alienados do Leblon, leitor, não merecem ser conscientizados? Pobres moradores do Leblon!
O liberalismo me deu algum treino contra a caduquice dos iluminados, aqueles que acham que sabem o que é melhor para os outros. Não discuto com eles sobre política ou economia. Eles são rabugentos demais para entender que o indivíduo pode optar por não querer entender a realidade que lhe cerca. Eles são enfurecidos demais para entender que nem todo mundo gosta de política ou de economia. Mas, quem sabe, talvez agora, que a alienação tomou as ruas de um bairro nobre, eles percebam essa incoerência...