Porque somos Vascaínos!

Texto escrito em setembro de 2009


“Vasco cai para a segundona”, eram as manchetes do dia seguinte. A verdade é que um time grande não cai do dia para a noite. Ele começa a cair muito antes de entrar em campo. São anos de más administrações, má estruturação das divisões de base, más contratações e mil outros fatores. O fato é que o último jogo, o derradeiro, é apenas o fim de uma triste estória. Talvez por perceber tudo isso que naquela fatídica tarde de domingo, com o time indo mal das pernas, a torcida do Vasco, entre lágrimas e suspiros, reafirmou o seu amor pelo clube. Entoou o hino, um dos mais belos do país, do início ao fim, por repetidas vezes. Nascia ali o slogan que marcaria a passagem do Vasco pela série B do campeonato brasileiro: o sentimento não pode parar.

Ele nunca parou, é verdade. Talvez porque desde cedo o Vascaíno aprende que tem um time com uma estória bonita para contar. Um clube que sofreu preconceitos por tentar romper com velhos dogmas. Quis por negros em campo, mas (quase) foi impedido de participar de torneios. Recuar? Desistir? Não: construímos um estádio! Com dinheiro do próprio bolso, arrecadado em meio a imigrantes portugueses trabalhadores. Levou tempo, mas eis que o Gigante nasceu: Estádio de São Januário, o maior estádio privado daqueles tempos. Como barrariam o Vasco agora?

Não barraram mais. O Vasco cresceu, se afirmou como um time imbatível. Vencia e envolvia os adversários. Diante de tamanha supremacia, como maquiar jogadores negros com pó de arroz? Como impedir que amarras grotescas e totalmente descabidas sobrevivam diante de fatos tão irrefutáveis? Eles não sobreviveram. Jogadores negros agora podiam mostrar seu talento como qualquer pessoa comum. Graças a um grupo corajoso de jovens jogadores cruzmaltinos.

Muitas daquelas lágrimas eram lembranças dessa estória. Outras eram de perplexidade. Como um time que no passado recente foi Campeão Brasileiro duas vezes, Campeão da Copa Libertadores, Campeão Carioca e Campeão da Copa MERCOSUL pode cair para a segunda divisão? Na dor todos somos assim: um pouco ingênuos. No fundo nós mesmos tínhamos a dolorosa resposta. Aquela que demoramos tanto para ver. Anos e anos convivemos com ela. Houve um tempo até que gostávamos dela.

Qual o Vascaíno que não sentiu prazer, mesmo que pequeno e íntimo, quando o (doutor) Eurico Miranda invadiu o Estádio de São Januário para “aconselhar” um árbitro a rever sua postura? Ou quem não gostou de ver Edmundo jogar no segundo jogo da final do Campeonato Brasileiro de 97, mesmo tendo tomado um cartão vermelho no primeiro? Ou quem não teve um orgulho danado de ver que em 2000 quase a metade da delegação brasileira era composta por atletas Vascaínos?

A coisa saiu do controle. Perdemos a cabeça. Deixamos que o (doutor) Eurico nos controlasse. Fizesse do nosso clube o que quisesse. Transformasse nosso querido Vasco da Gama em uma pocilga. Ora, não nos culpe. Achávamos que os fins justificavam os meios. Se estamos ganhando, que mal faz o Eurico tirar o dele? Se até o garçom tem os 10%, por que o Eurico não poderia ser assaltado dentro de um avião? Para a maioria de nós tudo aquilo era perfeitamente normal.

Mas não era. Não digo que acordamos do sonho naquela tarde de domingo ensolarado na Colina. Não. Já estávamos despertos fazia muito tempo. O choro daquele dia era por percebermos nossa burrice. Como demoramos tanto para acordar? Era um sentimento de raiva por termos sido tão idiotas durante todos aqueles anos. Era um misto de revolta por ver o nosso time, logo o nosso, naquela patética situação. Mas não era apenas isso.

Era também um choro de certezas. Eram lágrimas de um sentimento maior, que muitas pessoas, mesmo aquelas que tem um time de futebol, nunca vão conseguir entender. Porque ser Vascaíno é antes de tudo ser persistente. É não desistir diante de dificuldades. É não voltar para casa quando nos mandam. Porque ser Vascaíno é querer continuar em campo, mesmo quando insistem em apagar as luzes. Porque ser Vascaíno é ter desejo de vitória, é ter vontade de gritar cada vez mais alto que “o sentimento não pára”. O sentimento por essa camisa, por essas cores, por essa estória, simplesmente, amigo leitor, não pode parar. Afinal, não seríamos Vascaínos se parasse.

E foi assim que erguemos nossas cabeças e lotamos a Colina para o primeiro jogo na segundona. Era, de fato, o primeiro. Nas trinta últimas edições do Campeonato Brasileiro o Vasco só sabia jogar na primeira divisão. Jogou todas as edições. Era um dos poucos clubes com esse feito. Mas ignoramos as glórias do passado e lá fomos nós apoiarmos o time contra o Brasiliense. O jogo foi tenso. Jogadores, torcedores, técnico, enfim, estávamos todos tensos. Era uma coisa nova. Nunca antes estivemos naquela situação. Como relaxar?

Ganhamos os primeiros três jogos. Os jornalistas (sempre eles) já davam como certa a subida do Gigante. Mas nós, os torcedores, não nos empolgávamos. Continuávamos receosos. Afinal, o time não rendia. A defesa não se acertava. O goleiro não dava sinais de confiabilidade. O meio não tinha armador. O ataque não sabia finalizar. Até que surpresa: perdemos. Mas os jornalistas continuavam tranqüilos. Era efeito da Copa do Brasil, diziam eles. O Vasco havia poupado titulares para enfrentar o Corinthians pela semifinal desse campeonato.

Alguns de nós relaxaram. Outros não. Estes pressentiam o pior. Sentiam que o time continuava fraco. A defesa parecia se acertar. O goleiro titular se machucou, mas entrou um reserva bem melhor. “De onde saiu esse cara?”, nos perguntávamos. Os laterais também melhoraram. Mas o meio e o ataque continuavam não empolgando. A ressaca pela derrota na Copa do Brasil nos rendeu cinco empates. Malditos jogos sem a mínima criatividade. Não chegávamos ao gol do adversário. Parecíamos entregues. Estávamos condenados à segundona?

Não, porque somos Vascaínos. A torcida nunca desistiu. Lotamos a Colina durante todos os jogos. Estávamos sempre lá, apoiando o time. Cantávamos do início ao fim, sem nos deixar abater. O time continuou ruim, desfalcado, com problemas. Mas as vitórias voltaram. O Vasco, que chegou a ficar em oitavo na tabela, ressurgiu. Fomos ganhando, ganhando, até que veio aquela tarde de sábado chuvosa no Rio.

Era o último jogo do primeiro turno. Se vencêssemos éramos líderes. Saímos da Colina por motivos de força maior: queríamos demonstrar força. Dar uma lição a todos os outros times e às suas respectivas torcidas. Relembramos nossas origens. Não nos calamos. Colocamos nossos mantos e fomos ao Maracanã. Éramos quase oitenta mil vozes gritando, cantando, torcendo, empurrando o nosso Vasco. Nunca desistimos. Nunca entregamos os pontos. O resultado não tardou: goleada sobre o Ipatinga, festa nossa. A mais linda de todo o ano de 2009. Nenhuma outra torcida colocou tantos integrantes como nós colocamos no Maraca naquela tarde de sábado. Foi nossa apoteose, foi a nossa arrancada para voltar para a primeira divisão.

Subimos, enfim, como estava escrito desde o início. Clubes grandes só assim o são porque têm torcidas grandes e apaixonadas. E esses Clubes, quando passam por problemas sérios e acabam rebaixados, aprendem que a segunda divisão não deve ser encarada como o fim do mundo. Fossemos para a Série D do Campeonato Brasileiro, continuaríamos lá. Torcendo, vibrando. Nossas origens nunca nos deixariam esquecer de que não desistimos. Vemos o mundo com os olhos de uma criança, com os olhos de esperança no futuro, de garra para lutar, de força para ressurgir das cinzas. Sabemos que nossa estória é grande. Sabemos que os momentos difíceis serão passageiros porque nós superaremos.

Por quê? Porque não somos tricolores, não desistimos do nosso time. Não aparecemos nas ruas vestidos com nossos mantos apenas quando nosso time ganha. Vestimo-nos de Vascaínos quando estamos caídos, tristes, desolados. Porque nosso manto nos dá força. Não nos escondemos porque não temos vergonha de nossa estória. Temos, pelo contrário, imenso orgulho de pertencer a algo maior do que nós mesmos. E tudo isso porque simplesmente somos Vascaínos!


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