Aguardei as primeiras propostas concretas do governo provisório para tecer algumas linhas sobre o que espero da nova equipe econômica. Na semana passada, lembra o leitor, o governo anunciou o tamanho da encrenca: um déficit primário de R$ 170,5 bilhões como meta fiscal revisada para 2016. Já hoje, veio o anúncio de medidas para lidar com esse rombo. De maneira geral, tanto este quanto aquele estão na direção correta. Primeiro, houve reconhecimento do tamanho da frustração de receitas e a dificuldade para conter, de imediato, o crescimento das despesas. O anúncio do déficit traz, desse modo, um pouco mais de realismo, a despeito da incerteza ainda existente sobre possíveis esqueletos nas empresas estatais (Eletrobras, Caixa e Petrobras, em destaque). Segundo, as medidas anunciadas para lidar com o rombo vão na direção de um ajuste fiscal sério de médio prazo. O diabo, claro, está nos detalhes, como procurarei explorar nessas linhas.
Antes de tudo, uma advertência. Trataremos o atual governo pelo nome que lhe cabe, provisório, até que seja julgado o processo de impeachment que tramita no Senado Federal. Isso, por si só, adiciona enorme incerteza ao ambiente econômico, independente da correta direção das medidas anunciadas e, por ventura, aprovadas. Feita a ressalva, prossigamos.
O rombo de R$ 170,5 bilhões
Seguindo o rito estabelecido pelo artigo 9º da lei complementar 101 de maio de 2000, a agora famosa Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), e pelo artigo 55 da Lei n° 13.242, de 30 de dezembro de 2015, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2016, o governo federal divulgou na semana passada o Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias com a consequente revisão da meta fiscal para o ano corrente. Os parâmetros macroeconômicos no qual estão baseadas as estimativas seguem o exposto na figura 01 abaixo.
Há, como se vê, uma piora na expectativa de crescimento para esse ano, mais próximo a -4%. Daí vem parte da reestimativa de receita apresentada no relatório, reduzida, em termos líquidos, em R$ 107,9 bilhões em relação à avaliação anterior. Já as despesas foram aumentadas em R$ 30 bilhões. Com efeito, a estimativa do resultado primário do governo central passou de um superávit de R$ 24 bilhões para um déficit de R$ 113,9 bilhões em 2016. Em termos do PIB, de 0,38% para -1,84%. A figura 02 resume as principais métricas.
Entre as receitas administradas pela Receita Federal que foram deixadas de considerar, estão: (i) R$ 35 bilhões da repatriação de recursos; (ii) R$ 10 bilhões com a reintrodução da CPMF; (iii) R$ 6,1 bilhões com o fim das desonerações do PIS/Cofins de computadores; (iv) R$ 4 bilhões com operação de ativos. Ao somar mais R$ 22,1 bilhões com a alteração de parâmetros e arrecadação até abril, chega-se a uma frustração esperada, no âmbito da Receita Federal, de R$ 77,3 bilhões para o ano.
Uma vez previsto o déficit de R$ 113,9 bilhões para o governo central, o governo ainda adicionou mais R$ 56,6 bilhões a título de "Riscos Fiscais, Passivos e Despesas já Contratadas", a saber: (i) R$ 19,9 bilhões referente à possibilidade de redução do resultado fiscal dos Estados; (ii) R$ 21,2 bilhões de redução no contingenciamento; (iii) R$ 9 bilhões para evitar paralisação no PAC; (iv) R$ 3,5 bilhões para a Defesa; (v) R$ 3 bilhões para a Saúde. Com efeito, chega-se ao déficit primário do Setor Público Consolidado de R$ 170,5 bilhões em 2016.
As medidas para lidar com a crise fiscal
Uma vez definido o campo de jogo, o governo propôs na manha de hoje algumas medidas para lidar com o problema fiscal. Chama atenção, de imediato, a ausência de medidas de curto prazo para reduzir despesas e aumentar impostos. As sete propostas anunciadas terão impacto praticamente nulo sobre aquele rombo de R$ 170,5 bilhões. São elas:
- Crescimento real nulo da despesa primária do governo federal;
- Fim do Fundo Soberano;
- Reforma da Previdência;
- Crescimento nulo dos subsídios;
- Antecipação de R$ 100 bilhões em receitas devidas pelo BNDES ao Tesouro Nacional;
- Melhoria de governança em fundos de pensão e estatais;
- Flexibilização dos investimentos da Petrobras no Pré-Sal.
Dessas, as duas últimas já são objeto de tramitação no Congresso. A melhoria de governança de fundos de pensão foi recentemente aprovada pelo Senado (PLS 78/2015), enquanto a flexibilização dos investimentos da Petrobras no Pré-Sal é uma proposta do atual ministro de relações exteriores, José Serra, também aprovada no Senado e remetida para a Câmara dos Deputados (PLS 131/2015).
O fim do Fundo Soberano pouco impacto terá no resultado primário, dado que lá só existiam R$ 2 bilhões. O fim do crescimento dos subsídios idem, a despeito de ser uma medida importante para sinalizar uma melhoria futura das despesas. Já a antecipação de R$ 100 bilhões em receitas pelo BNDES ao Tesouro Nacional deve ser vista com cuidado, diante do exposto no inciso II do artigo 37 da LRF. Diz o artigo e o inciso que "equiparam-se a operações de crédito e estão vedados: (II) recebimento antecipado de valores de empresa em que o Poder Público detenha, direta ou indiretamente, a maioria do capital social com direito a voto, salvo lucros e dividendos, na forma da legislação".
Sobraram duas medidas que dependem de ampla negociação no Congresso: a reforma da previdência e a limitação do gasto primário. A primeira passa por implementar idade mínima na aposentadoria e negociar "cláusulas de transição", enquanto a segunda passa por uma ampla agenda de desvinculação das despesas públicas. São medidas de extrema relevância para lidar com o mecanismo perverso que está por trás da atual crise fiscal no país, como veremos a seguir.
O mecanismo perverso
A essa altura, leitor, é importante ter a plena consciência de que o "não ajuste das contas públicas" deixou de ser opção. Nessa seção, mostro os motivos. O gráfico 1 traz o comportamento das receitas e despesas primárias do governo central em relação ao PIB. A linha vermelha é a despesa e a linha azul a receita, sendo aquela vista no eixo à direita e esta no eixo à esquerda. Observe que a despesa sai de pouco mais de 14% no início da série para quase 20% no final, enquanto a receita sai de 16,46% no início para 17,78% no final. A série vai de novembro de 1999 a março de 2016.
A despesa, leitor, aumentou quase 6 pontos percentuais do PIB nesse período. Isso não foi problema enquanto a receita também se manteve crescente. O período recente, ilustrado no gráfico pela área hachurada, mostra quando as coisas passaram a ficar dramáticas. Enquanto a despesa continuou sua trajetória de crescimento, a receita passou a declinar. O resultado foi a abertura da boca de jacaré.
É sempre possível culpar as desonerações implementadas pelo governo afastado e a desaceleração da economia, que causaram a queda de receita ilustrada no gráfico. Entretanto, uma visão mais abrangente recomenda olhar o crescimento insustentável das despesas ao longo do tempo. Estas, afinal, cresceram o dobro do PIB no período selecionado, explicando sua tendência ascendente.
O mecanismo é perverso. Dado que a despesa cresce muito mais do que o PIB, para que as contas fechem, é preciso manter a receita crescendo no mesmo ritmo, como ilustra o gráfico 2. Quando isso não é possível, como no período atual, o drama se instala, tendo consequências nefastas para a dívida bruta, como mostra o gráfico 03.
O ajuste é inevitável
Como se pode ver, leitor, o ajuste atual é inevitável. O preço do "não ajuste", afinal, é deixar de financiar a dívida bruta no mercado de títulos e passar a imprimir moeda, gerando uma hiperinflação. Isto porque, a sociedade brasileira não parece mais querer manter o mecanismo perverso, isto é, o aumento da carga tributária para financiar o aumento de despesas. Desse modo, será preciso enfrentar o aumento da despesa primária. Seja tornando-a mais eficiente, seja limitando seu crescimento, como propõe agora o governo provisório.
O diabo, contudo, está nos detalhes. Para que a despesa primária interrompa sua trajetória crescente será preciso enfrentar temas difíceis, como a desvinculação de receitas para saúde e educação ou o crescimento de benefícios sociais atrelado ao salário mínimo. Não é uma agenda fácil. Por isso, é preciso jogar limpo com a sociedade, ser transparente. O governo federal precisa liderar o debate, mostrando os custos e benefícios do ajuste que precisa ser feito. É só assim que poderemos manter nossa perspectiva de futuro.
______________
(*) Para uma discussão sobre o ajuste, ver aqui.