Moeda: vítima inocente da crise.

Muitas [novas] teorias e diagnósticos ainda estão por vir no bojo da atual crise econômica. Há muitas vítimas – poucas inocentes, é verdade – desse tsunami financeiro que assolou todos os cantos do globo. E sobre elas ainda serão contados detalhados romances, filmes e mesmo teorias econômicas. Hoje, em especial, gostaria de lembrar de uma das vítimas silenciosas de toda essa confusão: a moeda.

A moeda é aquilo que o gênio John Stuart Mill classificou como o mais intrinsicamente insignificante numa sociedade. Parece um raciocínio meio tolo, banal, vindo de umas das maiores mentes do século XIX. Mas não é, leitor amigo. A moeda é algo incrivelmente insignificante mesmo. Todos nós a usamos diariamente sem nos atermos de suas funcionalidades básicas. Mill não estava errado em seu pensamento, pois exclamaria com louvor que a moeda é como uma máquina que faz mais rápida e confortável aquilo que poderia ser feito sem ela; e como muitos outros tipos de máquinas, só exerce influência própria e independente quando deixa de funcionar.

É exatamente esse deixar de funcionar que experimentamos nesse momento. A moeda é afinal, em tempos normais, apenas um intermediário de trocas, que sem ela, seriam extremamente custosas de serem feitas. Antes dos derivativos, da securitização, dos mercados futuros, portanto, a moeda é apenas um facilitador de transações comerciais e financeiras. O leitor astuto deve pensar que se deve cuidar bem [muito bem] dessa máquina tão delicada dos tempos contemporâneos.

E a quem cabe tal missão, leitor? Já houve muitos cuidadores. Tal tarefa, hoje, cabe aos Bancos Centrais. A missão dessas nobres instituições é zelar precisamente pelo valor de compra do numerário nacional. Não se pode deixar que a moeda perca suas funções básicas, quais sejam: servir de meio de troca, servir de unidade de conta e, notadamente, de reserva de valor. Quando tais funções caminham a própria sorte, toda a sociedade sofre. Os custos são extremamente elevados, diria Mill se vivo ainda fosse.

Mas porque escrevo sobre a moeda, quando a crise é de títulos públicos e privados? Leitor amigo, tudo é mesmo interligado. À função exercida pelos Bancos Centrais damos o nome pomposo de política monetária. Cabe, enfim, tanto a gerência da oferta quanto a previsão da demanda por moeda. Afinal, títulos nada mais são do que demanda por moeda em um futuro próximo. E assim, leitor, está tudo amarrado: a autoridade monetária não pode se descuidar dos nuances, das complicações e complexidades em que se transformou o mercado financeiro. Regular é hoje o verbo conjugado por onze em cada dez banqueiros centrais.

A moeda não foi bem cuidada nos últimos trinta anos. Talvez a oferta de moeda tenha sido, via gerenciamento diário de liquidez e metas de taxa básica de juros. Mas não a demanda! Essa foi ignorada, deixada ao largo, ao sabor da maré. Lembre-se que demanda por moeda não é apenas expressa hoje, mas também pode ser expressa no tempo. A construção de uma economia monetária de produção – ao gosto dos keynesianos – foi o subterfúgio que faltava para o instituto da dívida e, portanto, do crédito ganhar respaldo definitivo. Sem a moeda, é provável, que não haveria tanta oferta de crédito quanto há hoje.

O famoso esquema D-M-D´ de Karl Marx, em que procurava simplificar a hoje contemporânea noção de maximização de lucros da firma já não passa mais por M. O capital que entra no processo produtivo hoje é emprestado para outrem, onde é cobrado juros (´ ) e assim valorizado mais depressa. E antes que o leitor se apavore: a moeda, donde ficas? Não fica, leitor. A moeda fiduciária – sem valor intrínseco – depende de uma única coisa para sobreviver: de bens e serviços. Sem isso, tudo o mais constante, o capital valorizado não tem lastro físico. Em outros termos, a crise é a resultante de um processo de criação de riqueza artificial. Uma riqueza que não foi construída tendo como base a criação de valor. E sem criação de valor, a moeda não presta seu papel fundamental, qual seja servir de numerário para a troca de um bem por outro.

O recente paper de Rogoff et al diz o que está escrito acima em uma coloração mais contemporânea. Diz ele que serão necessários alguns anos para que empresas, famílias e bancos (!) se desavalanquem. Isto é, cessem suas dívidas. Somente assim, quando a alavancagem entre passivos sobre ativos encontrar uma zona de conforto é que as economias nacionais poderão ousar crescer novamente. Tudo isto, repito, está relacionado aos maus tratos que a moeda sofreu nos últimos trinta anos. Sem a correta operação da política monetária – tanto do lado da oferta, quando do lado da demanda – as crises são apenas uma questão de tempo. E como diria Renato Russo, que isso sirva de aviso a vocês [brasileiros]!

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