Surrealistas, pecados e redenção: para onde vai o Banco Central?

Surreal é o nome do mais novo protesto carioca contra os preços abusivos que têm sido praticados na cidade. A ideia é boicotar os estabelecimentos que, segundo os idealizadores, estão aproveitando os grandes eventos esportivos para praticar preços surreais, em alusão à obra do pintor catalão Salvador Dalí. O surrealismo, no qual Dalí e vários outros pintores estão inseridos, nasceu na década de 20 do século passado, para se opor ao racionalismo que dominava tanto a literatura quanto as artes plásticas. As métricas parnasianas seriam fortemente atacadas pelo movimento modernista, influenciando uma geração de novos artistas. O irreal e o fantástico ganhariam vozes no seio da poesia, das artes plásticas e da prosa.

Mas, pergunta o leitor nesse ponto, o que tem a ver o movimento surrealista de Dalí, Breton, Ernst, Magritte dentre outros com a política monetária brasileira e com o protesto carioca? Tudo, simplesmente. Oscar Wilde é outro autor que poderia muito bem servir de inspiração para o movimento, quando escreveu que eles sabem o preço de tudo e o valor de nada, em uma referência moral aos cínicos de plantão. Talvez Wilde e Dalí, se morassem no Rio ou em qualquer outra capital do Brasil, se revoltassem também com os preços brasileiros. E se fossem economistas, a despeito das muitas discussões complementares que podem ser feitas sobre o comportamento dos mesmos, é provável que citassem a inflação para explicar a ira dos cariocas.

Afinal, leitor, a inflação acumulada nos últimos seis anos é de mais de 40%. No mesmo período a inflação norte-americana foi de 11%, a do Chile 16%, a do México 27%[1]. A inflação, o aumento generalizado de preços, reflete em última instância o descolamento entre oferta e demanda de bens e serviços. Se o crescimento daquela é menor do que desta, a patologia se vê sem amarras para irradiar-se pelo organismo econômico. Infelizmente, apesar dos avanços da teoria econômica, não existe cura para a doença: apenas tratamento.

O tratamento convencional inclui moderação nos gastos do governo, visando não produzir pressões adicionais sobre a demanda agregada, bem como correta administração da oferta monetária. Em tempos modernos, entretanto, ao invés de controlar diretamente a quantidade de moeda que é disponibilizada para o público, os bancos centrais controlam o preço, representado pela taxa básica de juros. Um corolário imediato disso é que se o lado fiscal não ajuda, a política monetária deve empreender esforço maior para arrefecer a demanda, visando manter seu crescimento condizente com o da oferta agregada. Analogamente, se existem amarras para o crescimento da oferta, o banco central não pode deixar que a demanda se vá como cavalo bravo. É preciso impor limites ao consumo, seja das famílias, seja do próprio governo.

Percebe o leitor, por suposto, a tarefa inglória a que está submetida a autoridade monetária. É como se estivesse na mesma situação que Dâmocles, cortesão de Dionísio, rei de Siracusa. A Dâmocles, Dionísio ofereceu as benesses do poder, sob a condição que lhe fosse amarrada uma espada no pescoço, presa apenas por um fio de cabelo. É a anedota moral que representa os desafios de quem deve tomar decisões importantes continuamente. Em outros termos, o banco central está submetido à espada de Dâmocles todos os dias, quando tem de encarar a formação de preços nos mercados financeiros, de fatores e de bens.

Com uma inflação em 12 meses batendo os 6% nos últimos quatro anos, terá a autoridade monetária cumprido seu papel? Ou a espada de Dâmocles lhe tem tirado o sossego para decisões importantes? Na última reunião do Comitê de Política Monetária, o banco resolveu surpreender parte expressiva do mercado, que já não acredita muito em autonomia operacional e o vê subjugado aos planos do Palácio do Planalto. Decidiu, por unanimidade, elevar a taxa básica em 50 pontos-base, diante da inflação ainda bastante disseminada, expressa no IPCA de dezembro. Será que o grau de ajuste continua na próxima reunião, levando a taxa Selic para 11%?

As expectativas de inflação permanecem descoladas, em sinal de que a credibilidade da autoridade monetária continua seriamente comprometida. A média das expectativas para os próximos cinco anos está em 5,55%[2], bem acima do centro da meta. Nos próprios modelos do banco, diga-se, a inflação efetiva não converge para 4,5% nem no último trimestre de 2015, evidenciando que o atual patamar de juros nominais é inconsistente com a taxa de juros neutra, aquela que não acelera a inflação. Haverá redenção para o banco central brasileiro?

O caminho percorrido pela autoridade monetária nos últimos anos faz lembrar a personagem Lúcia, a cortesã de José de Alencar. Apaixonada por Paulo, o provinciano que veio estudar na capital, Lúcia percorre a redenção do espírito, por meio de autoflagelo. De cortesã a beata, redimida de seus pecados carnais pela morte do corpo e elevação de sua alma. Deverá o banco central fazer o mesmo?

As peripécias carnais do banco envolvem manter a taxa de juros reais abaixo de 2% ao longo de boa parte de 2012, por ordens pecaminosas do Palácio do Planalto. Era preciso, afinal, coibir a ganância dos bancos comerciais e seus lucros usurpadores da boa fé dos correntistas. Ocorre, entretanto, que a ideia de que os juros eram altos no país por causa dos banqueiros não sobreviveu muito tempo, como previa o tratamento convencional, fazendo a inflação convergir para o limite superior da meta – sem intenção de volta.

Nesse contexto, ao que parece, para se redimir dos pecados do passado, a autoridade monetária deverá passar pelo calvário das inquisições, diante de um mercado cético sobre suas reais metas. Tal seara inclui elevar a taxa básica de juros para no mínimo 11%, fazendo com que descontada as expectativas de inflação, a taxa real de juros situe-se próxima à taxa de juros neutra, essa em torno de 5%.[3] Ressalta-se aqui que a convergência para o centro da meta exige elevação acima desse valor, dado que a cada 100 pontos-base de aumento nos juros faz-se reduzir 40 pontos-base na inflação, no período de 5 a 8 trimestres.[4]  Ou seja, leitor, mesmo em 11%, a inflação efetiva ainda rondará o limite superior da meta, estando sujeita a toda a sorte de choques de oferta.

Os surrealistas do Rio de Janeiro parecem ter razão ao notar o contínuo aumento de preços. O descolamento entre oferta e demanda, causado por inúmeros fatores, tem na política monetária frouxa dos últimos anos mais um aliado. A redenção de seus pecados, que o levará a recuperar a credibilidade perdida, exige comprometimento firme com o centro da meta de inflação. No nosso cenário básico, o limite mínimo desse processo é de 11%. Em outros termos, o Banco Central deve fazer mais um ajuste de 50 pontos-base na próxima reunião ou mais dois ajustes de 25 pontos-base nas duas próximas reuniões, visando chegar a esse número para a taxa básica de juros.

Haverá, assim, redenção, leitor? ▪

 

 

(*) Artigo publicado originalmente no Monitor de Política Monetária, aqui


[1] Dados para o México são do FMI, para o Chile da OCDE, para os EUA é do FED St. Louis e para o Brasil foi utilizado o IPCA. Todos os dados são de preços ao consumidor.

[2] Tomando a média mensal em dezembro de 2013 das expectativas do Gerin, Banco Central.

[3] Dados do FMI.

[4] Nesse exercício, para que a inflação convirja para o centro da meta em até 24 meses, a taxa de juro real deve ser mantida acima da taxa neutra em x pontos percentuais, durante período adequado. Isto é, dado que a inflação encontra-se 140 pontos-base acima do centro da meta, o Banco Central teria que elevar a taxa real em 350 pontos-base sobre a taxa neutra, fazendo com que a mesma fique em 8,5% a.a. Descontada a expectativa de inflação, a taxa nominal, portanto, deveria situar-se próxima a 14,5%. Verifica-se, assim, que manter a taxa em 11% ao ano é o limite mínimo desse processo, dado que nesse patamar a taxa real se aproxima da taxa neutra. Como esse exercício envolve razoável grau de incerteza, por lidar com uma variável não observável (a taxa neutra) e pela própria dinâmica de transmissão da contração monetária sobre os preços, o Banco Central deve chegar aos 11% e realizar o que chamamos de “parada técnica”, ponto onde avalia a repercussão do aumento de juros sobre o nível geral de preços, dadas as defasagens envolvidas. O ritmo de repercussão dessa transmissão é quem determinaria um avanço maior dos juros, para além dos 11%. Em outros termos, 14,5% deve ser visto apenas como referência abstrata, não sendo o processo aqui descrito mecânico, dado que está sujeito a inúmeros fatores contrabalanceadores. Em assim sendo, ao Banco Central caberia trabalhar na região de juros entre 11% e 14,5%, visando trazer a inflação para o centro da meta.

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