O efeito Neymar: será que agora viraremos um mercado de futebol sério?

Antes de qualquer coisa, leitor, quero afirmar novamente que eu fui e sou contra a realização de uma Copa do Mundo e de uma Olimpíada no Brasil. Por um motivo muito simples: os recursos públicos que estão sendo direcionados para esses eventos poderiam ser melhor alocados em outros bens e serviços públicos, notadamente saúde e educação. Um segundo argumento: porque os recursos públicos serão desviados no meio do caminho, dado que o nosso país não tem uma estrutura de auditoria eficiente para monitorar a aplicação desse dinheiro. Feitas essas observações, posso entrar no tema do artigo: o que significa o Neymar ter ficado no Santos Futebol Clube? Isso mudará a forma de gestão do futebol brasileiro?

Vamos por partes, leitor. Em primeiro lugar é preciso entender como funciona o mercado internacional de futebol, uma espécie de reinterpretação do pacto colonial que configurou os primeiros séculos de nosso país. Países periféricos, como Brasil e Argentina, exportam jogadores [matéria-prima] para países europeus, onde eles são manufaturados em uma indústria bastante complexa, delicada e com diferenciais de competitividade sem precedentes. Foi assim ao longo dos últimos trinta anos. Todo esse modelo de negócios sendo executado por Clubes de futebol administrados por cartolas, de forma bastante artesanal e precária [com as exceções de praxe] que viam na exportação de jogadores a principal fonte de receita.

O marco da mudança, a meu ver, foi a volta de Ronaldo Fenômeno aos campos brasileiros. Não pelo seu desempenho em campo, já bastante precário, mas pelo contrato financeiro que se estabeleceu naquele momento. Um contrato salarial bancado principalmente por um pool de investidores e marginalmente pelo Corinthians. Nascia ali uma nova forma de bancar o salário de jogadores fora de série e a consequente exploração de suas marcas em campanhas de marketing. Jogadores que só voltariam a jogar no Brasil em fim degradante de carreira. Ronaldo, mesmo com um percentual bastante reduzido da sua melhor forma física, ainda era em 2009/2010 um grande jogador, que seria aceito sem maiores questionamentos no cenário europeu. Começava ali a mudança de percepção. O modelo de exportação de jogadores estava fadado a ser substituído no médio prazo.

O Corinthians deu o pontapé inicial, algo que foi seguido pelo Flamengo com a contratação de Adriano na campanha de 2009 e de Ronaldinho Gaúcho em 2011, agora tem seu ponto auge na permanência do principal nome do futebol brasileiro nos últimos anos: Neymar. A diferença entre este e aqueles três jogadores é que Neymar é jovem, é uma promessa do futebol mundial, ou seja, tinha tudo para ser mais uma peça de exportação para o rico futebol europeu. O Santos faturaria com a venda algo em torno de R$ 110 milhões, fatia que, claro, seria dividido entre os investidores do craque. E essa transação comercial poria um fim no efeito Neymar. O Santos deveria voltar-se novamente para as suas divisões de base e buscar um novo grande jogador com potencial de exportação.

Mas não foi isso que aconteceu. A assinatura de um contrato com Neymar até o fim de 2014 e o aumento de 100% de sua multa rescisória – com o consequente aumento de salário para o craque – representa um novo modelo de negócios para o mercado de futebol brasileiro. O presidente do Santos tinha números para mostrar que sua estratégia está no caminho correto. Em 2009, quando assumiu, a receita do clube foi de R$ 70,4 milhões. No ano seguinte aumentou para R$ 116,5 milhões. Para este ano projeta-se uma receita de R$ 164 milhões. O detalhe que importa: esse crescimento não é mais liderado pela transferência de jogadores para fora do país. A receita obtida com este item representou apenas 19,5% em no ano passado. 53% da receita vieram de venda de transmissão para televisão, patrocínios e publicidade. Os recursos obtidos com bilheteria somaram R$ 19,5 milhões e o montante obtido com o programa de sócios foi de R$ 9 milhões.

O Santos, leitor, percebeu que manter seus craques jogando com a sua camisa pode ser mais vantajoso a médio e longo prazo do que simplesmente desfazer-se deles, com vendas duvidosas e aplicação obscura dessas verbas. É um benchmark para todo o mercado de futebol brasileiro por um motivo bastante simples: os demais clubes acabarão, cedo ou tarde, adotando as mesmas práticas – e melhorando-as. Caso não façam, ficarão para trás na conquista de títulos, no abocanhamento de cotas de televisão, na montagem de elencos minimamente competitivos etc. Ao menos essa é a esperança!

É claro que isso não seria possível sem que empresas e agências de publicidade enxergassem no futebol brasileiro um produto que pode trazer um incremento de valor significativo para as suas marcas. Não é por outro motivo que a manutenção do craque Neymar em solo tupiniquim e a repatriação de jogadores como Ronaldinho Gaúcho e Luís Fabiano está correlacionada com a própria transformação da economia brasileira. A implementação do Plano Real em 1994, pondo fim a mais de dez anos de hiperinflação, a conquista da lei de responsabilidade fiscal, a construção de um sistema financeiro sólido e o respeito dos seus pares internacionais são os responsáveis pelo crescimento médio de 4% ao ano nos últimos oito anos, contra 2,3% no período imediatamente anterior - e não esse intervencionismo desenfreado da República Petista. E essa mudança no cenário macroeconômico é causa sine qua non dos avanços que estamos assistindo atualmente.

No ano passado o mercado nacional de clubes movimentou cerca de R$ 2,18 bilhões. O faturamento com bilheteria e patrocínio, uma fonte de receita mais previsível do que a descoberta e venda de futuros craques, tem aumentado. Mas para que aumente mais será preciso investir em profissionalização. Contratar gente que saiba usar Excel, fazer marketing e que tenha um mínimo de conhecimento financeiro é o básico do básico para tornar o futebol brasileiro um exemplo de campeonato competitivo. Não adianta ter os melhores jogadores por aqui, será preciso ter bons estádios, venda antecipada de ingressos, investir em campanhas agressivas de marketing, trabalhar a marca dos clubes, investir em promoções virtuais, fazer parcerias etc.

Mas antes de tudo isso é preciso arrumar a casa. Os clubes brasileiros, a maior parte deles, são um amontoado de gente sem a menor noção administrativa. Não têm noção do que seja um fluxo de caixa, por exemplo. Prova disso é que apesar das receitas com patrocínios, cotas de televisão e bilheteria terem aumentado substancialmente, os dez maiores clubes do país somam dívidas de mais de R$ 1 bilhão - lembram da "TimeMania"?! Daí que para se tornar um setor sustentável, será preciso primeiro reestruturar esse montante de dívidas. Tomar conhecimento do número final, listar todos os credores, alongar prazos, zerar esqueletos com a justiça e com as três esferas do Estado.

Além disso, será necessário promover mudanças na governança dos clubes. Torná-los mais democráticos, com o envolvimento dos sócios no processo de decisão é a melhor forma de afastar os mal-intencionados. Para que isso ocorra será necessário construir programas de sócio que vão além do simples direito de comprar ingressos antecipados e/ou dar direito a voto. É preciso trazer o torcedor para dentro do clube. Fazer com que ele se sinta responsável pelo destino do clube. Ao invés de delegar a um punhado de aproveitadores que só querem ganhar com a compra e venda de jogadores.

Novamente, eu sou contra a Copa do Mundo no Brasil, dados os motivos que expus no primeiro parágrafo. Mas ela será feita, não há muito que discutir sobre isso. Serão construídos estádios sem a menor previsibilidade de uso para os próximos dez ou vinte anos. O dinheiro público irá para o ralo em uma grande parte deles. Assim como as prometidas obras de infraestrutura não sairão do papel. Mas há uma externalidade positiva da realização desse evento em nosso país: a possibilidade de profissionalização.

Não há dúvidas de que o craque Neymar só ficou porque em 2014 a Copa do Mundo será aqui, em terras tupiniquins. Só por isso a Copa já valeu a pena. Outros clubes seguirão o exemplo santista, mantendo suas promessas jogando em campos brasileiros por mais tempo do que o normal. Talvez três ou quatro temporadas. Isso traz o torcedor ao estádio, gera demanda para programas bem feitos de sócio torcedor, gera interesse, mexe com a paixão. É o craque afinal que faz com que você realmente acredite no seu time. Tome uma arquibancada e apoie incondicionalmente o seu time.

Mas não instantaneamente. Craques devem ser acompanhados de reestruturação financeira. Campanhas de marketing ocas, com programas do tipo sócio torcedor com alto índice de inadimplência são o maior exemplo de como ainda estamos engatinhando no processo de profissionalização. É preciso ter estádios novos, confortáveis, com programas de venda antecipada para toda a temporada do clube. Estádios com cadeiras numeradas, onde cada torcedor tem a sua para todos os jogos da temporada. Isso tem um preço, é claro, mas acredite, leitor, tem muita gente por ai disposta em comprá-las.

Poucas coisas são mais emocionantes do que assistir a uma partida de futebol no estádio do seu clube. Cantar as músicas da torcida, estar em contato com milhares de pessoas que curtem a mesma paixão que você. O problema é que para chegar lá, hoje, você tem que usar um transporte público precário, tem que se envolver em brigas com a polícia, mesmo sendo completamente inocente, tem que sentar em uma arquibancada de cimento, frequentar um banheiro que mais parece um chiqueiro de tão fedorento. Torcedor, senhores, não é gado, não é massa de manobra: ele consome um produto que não tem substituto. E dada a elasticidade-preço da sua demanda, estaria disposto a pagar um preço bastante elevado se tivesse a certeza de ser tratado com conforto e ver os seus grandes ídolos em campo. Qualquer coisa diferente disso não é futebol: é apenas circo de horrores.

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