O Rio de Janeiro assume primazia no cenário nacional muito antes de se tornar capital da República. A importância geopolítica do Porto do Rio se torna central ainda no período do açúcar, servindo de entreposto comercial para a exportação desse produto. Amplia-se essa centralidade com a expansão promovida pelo ouro e posteriormente pelo café. Como se vê, mudar a capital de Salvador para o Rio é mera consequência do dinamismo econômico dessa última.
A chegada da Corte Portuguesa traz consigo a burocracia estatal. O Rio assume não apenas a centralidade econômica da Colônia, mas a própria vida política e cultural do emergente Brasil. É justamente no período 1820-1870 que o Rio se vê como centro da reinserção da economia brasileira no comércio mundial. O Brasil se torna o maior produtor e exportador de café, sendo monopolista na oferta do produto – algo com poucos precedentes no mercado de commodities, dada a estrutura basicamente competitiva desse locus comercial.
Como observa o professor Mauro Osorio, especialista na economia fluminense, “O Rio de Janeiro se constrói hegemonicamente como um espaço de articulação nacional, derivando incialmente seu dinamismo econômico-social de fato de ser principal porto brasileiro e centro militar e, posteriormente, de ser a Capital da República e centro cultural, político e econômico – como sede do poder, centro financeiro do país e sede de empresas públicas e privadas que atuam no território brasileiro e mesmo latino-americano”. Essa centralidade começa a cair por terra muito antes de Brasília ser construída, como pensa o senso comum. A partir de 1870 há uma progressiva perda de importância relativa. E isso está em consonância com a mudança do café para melhores terras no Vale do Paraíba. Se o Rio era o coração financeiro do Brasil, o café era o sangue que corria nas veias da capital federal. Um não conseguiria sobreviver, portanto, sem o outro.
Carlos Lessa, outro grande especialista no tema, qualifica a relação entre um e outro: “Sem qualquer exagero, o café como atividade econômica central, nasceu literalmente no interior da cidade do Rio da Janeiro”. Não é de se espantar, portanto, que a crise de um inicia a crise do outro. Seria possível imaginar, entretanto, que o declínio do café no Estado fosse compensando por alguma ação empreendedora no setor industrial. Há, de fato, um crescimento industrial – sobretudo da indústria têxtil – no final do século XIX, mas isso é apenas marginal. O que de fato ocorre é que a redução da renda derivada do café acaba por também reduzir a produção industrial.
A indústria brasileira, como todos sabem, é um subproduto da economia agroexportadora. Existe uma ligação quase umbilical entre um e outro setor, intermediado pelo capital agrário. Explica-se o fato de a produção industrial não ter se alavancado com a crise do café pela inexistência de escala suficiente. Nota-se o leitor que o Brasil ainda é nessa época uma economia escravista, com um consumo apenas marginal de produtos majoritariamente importados. Não é de se espantar que a implantação de trabalho assalariado na produção paulista do produto será ponto crucial para se construir, décadas depois, uma indústria nacional naquele local. Ao Rio resta observar, meio que abobadamente, o declínio de sua principal renda e a perda de importância em relação ao seu vizinho.
A crise do café no Estado deriva-se dos limites de expansão dessa cultura. Não havia à época técnicas de recuperação do solo compatíveis com a deterioração que esse produto o causa. Aliado à baixa produtividade do trabalho escravo é de se esperar que a economia do café estivesse por um passo. Não é o que acontece de imediato, dadas as atividades secundárias de intermediação financeira e comercial que o Rio continua mantendo, mesmo com a migração do café para territórios paulistas.
A industrialização brasileira pós-crise de 29 coincide-se com o esvaziamento econômico do Rio de Janeiro. Enquanto no período 1939-1980 a produção industrial nacional cresce 9,1% ao ano, o Rio cresce 6,9% e São Paulo assume a ponta com 9,8%. A olho nu pode-se dizer que são taxas elevadas para um Estado que perdeu sua principal fonte de renda. Mas o que se percebe é a perda de importância relativa para o Estado vizinho, algo que ficará bastante claro ao cabo do processo de substituição de importações.
São Paulo passa a ser o locus privilegiado da industrialização por possuir um estoque de capital acumulado no período imediatamente anterior. Possui dinamismo econômico, dada a diversificação de setores e atividades, possui economias de escala e ligações interindustriais. A ocupação do interior e a ampla rede ferroviária favorece a ampliação do mercado regional. A Indústria Paulista redefine as industriais regionais: São Paulo é o único Estado capaz de expandir nacionalmente, dados os custos menores e os novos padrões de consumo e produção.
Enquanto São Paulo cria condições cumulativas para tornar-se líder supremo do processo de industrialização brasileiro, o Rio parece se acomodar à condição de capital política e cultural do país. A indústria está em terras paulistas, mas o centro de decisão dos interesses da jovem República está em solo fluminense. Isso parece ser aceitável para as lideranças do Estado. Afinal, do Rio se olha o Brasil e de São Paulo se olha apenas São Paulo. Não é de se espantar, portanto, que a transferência da capital para Brasília seja apenas a cereja do bolo da estagnação fluminense. Claro que não instantaneamente.
Brasília só se tornará de fato um centro relevante após o período de redemocratização. Ainda hoje, o Rio mantem o maior contingente de funcionários públicos da República, mesmo mais de quarenta anos da perda da capital. Não é de se espantar que a transição da capital seja tida como a principal razão para a degradação do Estado. Mas, como notamos anteriormente, esse esvaziamento econômico já era algo bastante palatável desde o fim do século XIX. Algo que se torna aprofundado com a sucessão de governos populistas nas últimas décadas, que atolados na perda de importância econômica passam a implementar políticas clientelistas de cunho distributivo bastante perverso.
A letargia que toma conta do Estado é sem precedentes. Mais de um século após a transferência da cultura do café para São Paulo, o Rio ainda se vê como centro político e cultural do Brasil. Algo que beira à esquizofrenia coletiva, dada a concretude dos números. Nem política, dada a centralização das decisões em Brasília, nem cultural dado o esvaziamento de salas, eventos e museus apropriados. São Paulo assume-se como locomotiva econômica – tendo inclusive a centralização das operações financeiras – e também cultural do país, com seu patrimônio histórico adequadamente preservado.
A crise do Rio é, portanto, secular. Não é a transferência da capital o fator principal desse esvaziamento. É todo um processo econômico, político e social que fez com que o Estado chegasse ao início do século XXI visivelmente arrasado do ponto de vista fiscal, com parcos serviços públicos sendo prestados e a prevalência de governos assistencialistas. Se for verdade que do Rio se vê o Brasil, é igualmente fato que do Rio não se nota o próprio Estado. A dificuldade com que o carioca tem de resolver seus próprios problemas, cobrando das autoridades uma mudança de paradigma é talvez um dos grandes exemplos de esquizofrenia coletiva.
Nesse contexto, os recentes investimentos públicos e privados que estão sendo feitos no Estado devem ser vistos com alento. O Rio passou a liderar a recepção de investimentos no país. Tem implementado um programa de recuperação de territórios antes dominados pelo tráfico de drogas – as celebradas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Está a poucos anos de sediar com primazia frente aos outros entes da federação uma Copa do Mundo e uma Olimpíada. A segunda década do século XXI é, portanto, um período de resgate do Estado, largado a sua própria sorte ao longo de mais de um século.
Mas dessa vez sem ufanismos. Retomar territórios dominados por entidades paramilitares é condição básica para a implementação do Estado de Direito. Mas não é condição suficiente para eliminar o tráfico de drogas ilícitas. Para que isso ocorra é preciso investir em um dos grandes tumores da República: a corrupção. Não se combate a corrupção policial e de autoridades políticas sem ter um sistema judiciário eficiente. Um código processual ágil é fundamental para manter presos os que são comprovadamente corruptos. Uma polícia bem treinada e bem paga também.
Se há algum bem no fato do Rio sediar mais de 80% das reservas provadas de petróleo é a possibilidade de investir em três coisas básicas para qualquer sociedade que se queira civilizada: médicos, professores e policiais. Os dois primeiros são peças fundamentais para formar capital humano e colher frutos em duas dimensões. Primeiro na dimensão econômica, dado que pessoas mais saudáveis e melhor educadas são mais produtivas. Segundo que o aumento de bem estar promovido por um sistema de saúde eficiente e o aumento progressivo da taxa de escolaridade é condição fundamental para reduzir a desigualdade de oportunidade que assola não só o Rio, mas todo o Brasil.
No terceiro grupo de profissionais, os policiais, está a ordem, algo que foi usurpado dos cariocas desde que o Rio se tornou Rio. É emblemático o comentário de um explorador holandês quando aqui esteve no findo do século XIX: “No Rio a promiscuidade e a corrupção são generalizas. Políticos, nobres, clero, a sociedade, enfim, está toda contaminada”. Não existe cultura ruim ou boa. Cada cultura é um locus não comparável. Isso é sociologia básica e ninguém discute. A questão central é que no Rio o bem mais básico, a noção de civilidade, nunca esteve presente. Muito em função, é claro, da péssima educação formal recebida por seus cidadãos, seja em escolas públicas e privadas. Voltamos, portanto, a noção daquelas três básicas.
A guerra do Rio, leitor, coincide com a própria formação de seu território. Não se espera, portanto, que a mera retomada de alguns territórios, como a Rocinha e o Alemão, faça mudanças estruturais no Estado. Será necessário não apenas atrair investimentos produtivos, mas qualificar melhor as crianças e adolescentes, retomar investimentos em hospitais e ambulatórios e, promover uma verdadeira caça aos bandidos de farda e aos que corroboram com isso – os próprios cariocas, querendo fugir de alguma multa de trânsito, por exemplo. Sem isso, a guerra do Rio continuará ocupando o noticiário mundo a fora.