"Inflação alta, mas estável"

Os economistas keynesianos, de forma sistêmica, nos acusam de ignorar a realidade, em prol de nossos modelos. Eles, entretanto, prescrevem suas políticas econômicas anticíclicas ignorando as restrições institucionais das economias. Em alusão a García Márquez, quem são os habitantes de Macondo?

A frase do título não é minha. Ela foi ressaltada por um dos palestrantes do seminário sobre salário mínimo, realizado semana passada no IBRE. Por conhecer o autor da expressão de eventos anteriores e por igualmente conhecer as escolas que frequentou, os professores com quem teve aulas, seus trabalhos e sua vinculação teórica, me sinto confortável para relatar algumas palavras sobre como esse grupo de economistas interpreta o processo inflacionário atual. Para eles, a inflação de 6,28%, pelo IPCA de abril acumulado em 12 meses, é fruto da combinação entre maior consumo de serviços e choques de oferta, principalmente de alimentos. Aquele causado pelo aumento da renda dos mais pobres nos últimos 10 anos, estes pela eventualidade de problemas climáticos. Desse modo, o máximo que o Banco Central deve fazer é estabilizar a inflação no patamar atual, sob pena de causar uma recessão de proporções épicas para trazê-la para a meta de 4,5%. No presente artigo mostro os equívocos dessa interpretação.

Antes de mais nada é preciso dizer que a inflação é uma alta generalizada e persistente de preços. Logo, não de alguns preços ou em um único ponto do tempo. Apenas com a definição, portanto, excluímos os choques de oferta, concentrados atualmente no grupo de alimentos. Estes choques só são tratados pela política monetária se produzirem efeitos sobre os preços de outros produtos, ditos efeitos secundários. Acaso estes não ocorram, seus efeitos primários sobre a inflação devem ser acomodados no intervalo de tolerância do regime de metas. Dito isto, passemos ao caso dos serviços.

Talvez seduza muita gente o argumento de que a inflação de serviços hoje é elevada porque os mais pobres passaram a consumi-los. Hoje os mais pobres frequentam restaurantes, viajam de avião, têm acesso a cursos regulares, serviços médicos etc. Tudo isso graças à redução contundente do desemprego, com efeitos positivos sobre a desigualdade de renda. O problema dessa interpretação é ignorar os efeitos potencializadores da política econômica expansionista no pós-crise nesse processo. A expansão monetária, fiscal e parafiscal (aumento do crédito dos bancos públicos) gerou elevação do consumo, fazendo cair o desemprego. Sendo o setor de serviços intensivo em mão de obra, viu seus custos aumentarem, não tendo alternativa a não ser repassar essa elevação para os preços. Não por outro motivo a inflação de serviços mantém média em torno de 8% desde 2009.

Uma inflação de 8% em um grupo de preços que corresponde a mais de 30% da inflação medida pelo IPCA deveria gerar algum tipo de restrição à condução expansionista da política econômica. Isto porque, sendo esta uma das fontes de pressão, nada mais oportuno do que mitigar seus efeitos, mantendo um crescimento da demanda coerente com o da oferta.

De forma sistemática, entretanto, aquele grupo de economistas citado (predominantemente keynesiano, mas não apenas) ignora os efeitos de uma política econômica expansionista. Para essa corrente tudo o que importa é a demanda, dado o que chamam de princípio da demanda efetiva. Funciona, de forma simplificada, como segue. As economias capitalistas sofrem de incerteza inerente: não é possível saber ex-ante o que os consumidores e outros empresários demandarão ex-post. Em outras palavras, existe uma assimetria de informação entre o vendedor e o comprador, este sabendo se efetivará demanda ou não. Desse modo, em momentos de maior incerteza e, portanto, de maior aversão à efetivar demanda do comprador, cabe à política econômica tomar a iniciativa, incentivando via "multiplicador de gastos" os agentes privados a realizarem consumo e investimento. Mais consumo gera demanda, aumenta o fluxo de caixa futuro das empresas, melhorando as expectativas dos empresários, que tendem a fortalecer os investimentos. Em outras palavras, o incentivo de política econômica, em uma perspectiva dinâmica, gera o aumento da oferta de bens e serviços, via elevação do investimento.

É justamente por isso que, para os keynesianos, a inflação é um processo transitório, que sinaliza o aumento da demanda que causará o aumento do investimento a posteriori. Debelar a demanda, o consumo, via política econômica contracionista é debelar o investimento, que em uma perspectiva dinâmica - dois ou mais períodos - causará o aumento da oferta. Não faz sentido para um keynesiano usar política monetária para conter a inflação porque se esta demorar muito a ceder é um indicativo de restrições setoriais, que devem ser combatidas a contento. A inflação é, desse modo, causada por inúmeras restrições do lado da oferta e não pela política econômica expansionista, que deve assim ser para “animar” os agentes a demandarem bens e serviços, em momentos de maior incerteza.

Não à toa, nesse contexto, que tanto keynesianos quanto neoclássicos (ou "ortodoxos", ou qualquer outra designação que você tiver lido/ouvido por ai) concordam com o diagnóstico de "restrição no lado da oferta da economia brasileira". Não há um só economista - com exceção, talvez, dos marxistas - que não leve em consideração o aumento da produtividade como solução de longo prazo para a inflação. A despeito disso, o equívoco básico dos keynesianos é justamente desconsiderar essas restrições de oferta no momento de prescrever políticas econômicas expansionistas. Ora, se existem restrições para a oferta aumentar, porque raios vamos aumentar a demanda, sob o risco de não mais conseguir debelar a inflação consequente?

A resposta para essa pergunta é o primeiro problema das políticas econômicas expansionistas. Ora, dado um choque exógeno, vindo de uma crise de proporções seculares, por que não usar a política monetária, a política fiscal e os bancos públicos para amenizar uma possível recessão? Por que não conter o aumento de desemprego, se existem condições monetárias, fiscais e de reservas internacionais bem estabelecidas?

Em primeiro lugar, utilizar a política econômica de forma expansionista implica em saber o momento de parar. O governante dificilmente sabe o ponto de parar a expansão monetária, o aumento do déficit público e, no caso brasileiro, o uso de bancos públicos. Há um incentivo, chamado de viés inflacionário, do governante em promover o máximo de emprego possível, ao custo de mais inflação. Afinal, baixo desemprego elege; alta inflação, dificilmente, faz perder o cargo - à exceção da Alemanha.

Em segundo lugar, inflação alta dificilmente é estável. É como deixar o botijão de gás com escapamento e pensar que isso não provocará um incêndio. Sabe-se que à primeira chama, o risco é cada vez mais uma certeza. Uma inflação persistentemente acima da meta causa demanda por aumentos salariais, repasse para os preços e inflação cada vez mais elevada nos períodos seguintes. Expectativas deterioradas, a bem dizer, antecipam essa inflação futura mais salgada, trazendo-a com baixo desconto para o presente.

Nesse contexto, duas correções se colocam às políticas econômicas expansionistas. A primeira é que o crescimento sustentado é fruto de aumentos persistentes de produtividade, de investimento em capital humano e físico e de boas instituições. Todas fartamente estudadas e listadas pela literatura de desenvolvimento econômico nos últimos 60 anos. Ademais, uma política macroeconômica guiada por regras - e não reagente a cada ponto do tempo - costuma reduzir a incerteza, contribuindo para a maior previsibilidade do ambiente econômico. Uma política econômica discricionária contribui para aumentar o ruído da economia, reduzindo o potencial de investimento e, portanto, debelando o crescimento da oferta de bens e serviços.

Em segundo lugar, políticas anticíclicas só devem ser administradas, em último caso, se as instituições estiverem fortemente estabelecidas. Bancos centrais independentes, comprometidos com metas de inflação, em geral não confundem seus objetivos, explorando a redução do desemprego no curto prazo para colher preços em aceleração no futuro. Assim como, sociedades democráticas consolidadas dificilmente aceitam “contabilidade criativa” na gestão da política fiscal ou o uso indébito do Tesouro para financiar empresários suspeitos via bancos públicos. Políticas econômicas expansionistas, feitas em um vácuo institucional, geram apenas a necessidade da “próxima dose”, levando o organismo, irremediavelmente, à ressaca do período seguinte.

Em assim sendo, não me parece saudável voltar a ter esse tipo de discussão. A história brasileira já deveria ter sepultado esse tipo de argumento. Já deveria ter aposentado os livros que continuam a "pregar" esse tipo de receita para o crescimento econômico. Bem se sabe que, como disse no mesmo seminário a economista Zeina Latif, em resposta a uma das economistas pós-keynesianas presentes, economia não é religião e fartas evidências deveriam ser suficientes para debelar ideias ruins. Infelizmente não são e isso ainda custará muito, de novo, à economia brasileira. Como me refiro na epígrafe a esse artigo, quem, na verdade, são os habitantes de Macondo?

update: para os que acham que basta dizer que a política econômica não é keynesiana, leia aqui

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