Muito além dos vinte centavos

maracaEu não pretendia escrever sobre as manifestações que estão tomando conta das cidades brasileiras. E por que isso? Basicamente porque esse espaço, desde sua reinauguração em março de 2011, tem sido utilizado exclusivamente para análises macroeconômicas. Não é que eu não escreva sobre política, mas só escrevo sobre política quando isso interfere na macroeconomia. E justamente por isso, porque cada vez mais a atual administração federal está gerando um ambiente de incerteza na economia, eu tenho me posicionado mais fortemente nos últimos meses em minhas colocações econômicas sobre aspectos políticos. Entretanto, diante das manifestações, dos fatos equivocadamente passados por alguns mal intencionados, eu gostaria de tecer minha opinião sobre o assunto nesse breve (muito breve) post.

O início das manifestações se deu em Porto Alegre, em março, quando os mesmos conseguiram barrar o aumento da passagem de R$ 2,85 para R$ 3,05. A partir daí uma série de outras manifestações têm tomado algumas capitais brasileiras, chegando ontem, 14/06, à minha: Niterói. Por aqui, o aumento já ocorreu: a passagem subiu de R$ 2,75 para R$ 2,95. Mas, ao que tudo indica, as manifestações mais violentas têm ocorrido em São Paulo, onde o aumento é de R$ 0,20, fazendo a passagem dos ônibus passar de R$ 3 para R$ 3,20. Ou seja, um aumento de 6,7%. Em São Paulo, a última vez que a passagem havia aumentado foi em janeiro de 2011. Nesse período, a inflação medida pelo IPCA foi de 15%. Ou seja: o aumento é bem inferior à inflação, como corretamente apontou o atual prefeito da cidade. Mesmo os demais reajustes não estão muito descolados da inflação oficial, que, por acaso, está em aceleração nos últimos meses. Nesse sentido, cabe a pergunta: será que o protesto é realmente pelo aumento?

Alguns, como aquele inicial lá em Porto Alegre, podem até ter tido essa intenção. Mas, dado o alestramento e a organização via mídias sociais desses eventos, não me parece que a motivação seja pura e simplesmente não pagar alguns centavos a mais para utilizar transporte público. Há algo mais do que isso. Há, por exemplo, o Movimento Passe Livre, que briga por um sistema de transporte subsidiado para todos, isto é, sem catracas. Eles publicaram artigo na Folha que pode ser lido aqui. Além disso, há o fator Copa, que têm sido citado por alguns manifestantes: ora, bilhões gastos para construir estádios de futebol, enquanto a saúde e a educação estão um caco? Há também, é claro, organizações sociais e partidos políticos de esquerda infiltrados nesses movimentos.

O fato concreto é que a motivação desses jovens, em sua maioria, que tem tomado as ruas de nossas cidades, entrando em confronto com a força policial, não é homogênea. Ponto. Há diversas motivações, como as citadas no parágrafo anterior, perpassando algum grau de descontentamento com o sistema político, com o caos da infraestrutura brasileira e o péssimo retorno em termos de bens e serviços públicos, vis à vis, a quantidade de tributos que se paga no Brasil. Há também baderneiros, que só estão ali para ver o circo pegar fogo. Ou seja, há manifestantes pacíficos, há os violentos e a polícia entre eles, cumprindo seu dever legal de proteger a propriedade privada e o direito de ir e vir dos que não estão participando das manifestações.

Mas, pergunto: por que só agora? Tudo isso que disse, tudo isso que escrevi, já está ai há muito tempo. Meu palpite é que os tais olhos do mundo estão no Brasil. Isso parece ser um argumento razoável para explicar o porquê de só agora essas manifestações terem chegado a um nível de truculência poucas vezes visto no país. Tanto de um lado (manifestantes), quanto do outro (policiais). Ou seja, a questão é muito além da puramente econômica, muito além da puramente partidária ou de movimentos organizados. Há muitos manifestantes sem filiação política, sem nenhuma identificação de partidos, que estão ali apenas porque o momento parece ser o de estar nas ruas, em uma brincadeira irônica com o comercial de refrigerante. Em outros termos, parece correto para essas pessoas estarem nas ruas, protestanto contra qualquer coisa que os faça sair de suas casas e ir para o confronto. Os vinte centavos são, portanto, apenas uma desculpa.

E aqui devo esclarecer ao leitor que, politicamente, eu sou liberal. Sou do tipo social-liberal, que busca unificar liberdades individuais com melhoria das dotações iniciais dos indivíduos. Como economista, eu sou contra o movimento pelo passe livre, porque isso não me parece ser a solução mais eficiente do ponto de vista alocativo. Mas ao contrário do que pensa o senso-comum, como bom liberal, sou a favor de um Estado forte, com poucas funções, que dê conta de suas tarefas fundamentais: infraestrutura, incluída. No caso específico dos transportes públicos, o grande problema que existe é simples de entender: nós vivemos em um "capitalismo de compadres", onde alguns abonados são beneficiados por licitações fraudulentas, ofertando a seu belprazer - sem regulação forte - bens e serviços fundamentais para a sociedade. Ou seja, o problema é muito maior do que aparenta ser a princípio. Ele perpassa o contrato social existente no país, a falta de um Estado forte, a falta de uma economia regida pelo mecanismo de preço, a falta de instituições consolidadas. O que temos é apenas um projeto de capitalismo, que gera baixo crescimento econômico e péssimos serviços públicos.

Em última instância, leitor, o que mudou nesses quase vinte anos? Nós estamos mais informados, nós passamos pela experiência da estabilização macroeconômica, colhemos os frutos de uma redução consistente da taxa de desemprego, do aumento da renda e da escolaridade. A sociedade brasileira mudou. E, ao contrário do que podem pensar a princípio alguns liberais pouco afeitos ao debate, em última instância, o que essas manifestações revelam é que nós queremos mais - e não menos - capitalismo. Nós queremos um choque de produtividade e não uma volta ao passado de uma economia protecionista, de baixo crescimento e alta inflação. A revolta é justamente por estarmos gastando dinheiro com coisas que não são prioritárias, como Copas e Olimpíadas. A questão, leitor, está muito além dos vinte centavos. Ela é muito maior do que partidos políticos, movimentos por passe livre ou qualquer outra motivação singular que tenha levado esse ou aquele para as ruas nesses últimos meses. Ela poderia expressar uma tomada de consciência do trabalhador frente sua condição de oprimido, como querem os partidos políticos envolvidos nessas manifestações e como critica a direita tola. Mas é muito mais simples do que isso: o brasileiro parece não querer mais ser tratado como gado todos os dias. Parece que estamos ficando cansados. E, só por fazer essa leitura dessas manifestações, é que as apoio. Não os marginais que depredam patrimônio público, não a truculência, mas apoio a mensagem implícita, apoio o ato de protestar. Apoio o rompimento do silêncio. Simples, assim.

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