O problema da minha geração

Passei minha infância e adolescência sem saber que o maior problema do Brasil era esse negócio estranhíssimo chamado hiperinflação. Recordo apenas vagamente que era preciso estocar comida, bebida e demais utensílios para o mês, mas não sabia os reais motivos para aquilo. Não me importava, aliás, como não deve importar para nenhuma criança saber o porquê de o armário da cozinha ter de viver abarrotado ao longo de todo um período de tempo. Hoje, entretanto, o problema não é mais a inflação e sim os juros. Por que, afinal, nós economistas não conseguimos baixar os juros brasileiros?

Em termos econômicos nosso país mais parece um laboratório a céu aberto do que propriamente uma economia nos trilhos. Muito tem se discutido ao longo do tempo razões para os quais os juros brasileiros serem tão elevados. Por que afinal os juros do cartão de crédito devem ser de mais de 500% ao ano? Isso chega a ser um disparate tão grande que é meio esquizofrênico imaginar que uma economia de mercado consiga funcionar com números tão superlativos. Você, leitor, já parou para pensar como os juros interferem em nossa maneira de se relacionar?

Isso não deveria fazer parte apenas dos meus pensamentos profissionais. Afinal, todos nós somos compradores e vendedores de bens e serviços ao longo de nossos dias. Um cidadão médio é a um só tempo vendedor de força de trabalho e comprador de tudo em quanto. Você pode entrar em uma farmácia às onze da noite em busca daquele remédio para o fígado, aproveitar para comprar desodorante, sabonete e também lâmina de barbear. Suponha por um instante que a conta dê exatos R$ 60 e a moça do caixa lhe pergunta: crédito ou débito?

Você pode achar que R$ 60 reais são R$ 60 reais tanto no crédito quanto no débito. É normal pensar que o dinheiro valha o mesmo hoje do que vale daqui a um ano? Enigmaticamente, passamos a achar que o dinheiro é igual no tempo. Talvez – e aqui apenas talvez – essa nossa estória de convivência pacífica e harmoniosa com a inflação tenha nos deixado meio anestesiados. Afinal, de 1930 a 1993 convivemos com uma inflação de mais de doze zeros! É espantoso como o nosso país conseguiu conviver bem com tão exorbitante quantia.

Mas, espere, você pensa a essa altura. Não estávamos falando dos juros e dos R$ 60 da farmácia? Por que você voltou ao tema da inflação, talvez você pergunte. Ando de lado, leitor, com um propósito específico: fazer você refletir sobre o nosso talento sui generis para conviver com certas aberrações econômicas. Isto porque, para mim, não é muito diferente conviver com uma inflação anual de 500% de viver com uma taxa de juros no cartão de crédito de mesmos números. Nossa passividade com ambas as situações é exemplar em termos internacionais.

Gastamos muito, inclusive, para manter o serviço da dívida pública. Todos os anos gastamos mais de R$ 200 bilhões para rolar uma dívida de pouco mais de R$ 1,8 trilhão. É como se todos nós fossemos sócios de um imenso cartão de crédito, cujos juros são elevadíssimos. Achamos que isso é normal, natural, que não deveria ser muito diferente. Países como Grécia, Espanha ou Itália não são tão fortes como nós, leitor, posto que eles não têm condições para tamanha façanha financeira!

O problema da minha geração é essencialmente tornar os juros em um nível civilizado. Há muitas teorias, como disse, sobre o porquê de termos juros nesses níveis. Você pode ler tais motivos e consequências quase todas as semanas em algum blog, revista ou jornal. Recentemente, inclusive, nossa Presidente tratou de colocar os bancos como os grandes vilões desse problema. A esquerda radical, representada por pessoas que ainda querem romper com o FMI, que ainda querem decretar auditoria e moratória da dívida, vai pelo mesmo caminho. Para estes há uma razão simples para juros tão elevados: voluntarismo. Basta um déspota benevolente no poder para que os juros baixem, assim meio que por decreto.

Não se engane, leitor, mas foi mais ou menos desse jeito que pensamos em combater uma inflação de 90% ao mês. Afinal, diziam alguns economistas daquela época, que bastava congelar os preços que a inflação cederia. Voluntarismo, eles diziam. E já aqui, em pleno 2012, as coisas não parecem ser muito diferentes. Não me espanta que os economistas daquela época também estejam por aqui. São os mesmos que construíram um modelo de desenvolvimento que simplesmente ignorou o fato de que era preciso educar as pessoas. Ops, parece que nos esquecemos desse detalhe, não é mesmo?

Há muito de estapafúrdio em se cobrar 500% de juros ao ano, mas pouco disso tem a ver com voluntarismo. Ouso dizer que a menor parte dessa conta seja assim um efeito inercial que poderia ser graciosamente derrubado por algum mecanismo voluntarista – como parece estar na cabeça dos bancos estatais. O grosso de termos juros tão elevados está por suposto na diferença de tratamento que recebem credores e devedores nesse país. Os primeiros assumem muitos riscos no momento em que deixam você, leitor, adiar os R$ 60 para a próxima fatura do cartão de crédito. Os segundos têm enorme incentivo para não pagar essa conta. O risco dessa transação é evidentemente repassado ao preço, que no caso do dinheiro se chama taxa de juros.

Eu sei, você pode achar que essa explicação é um tanto quanto simples demais. Há tantos modelos e explicações mais rigorosas para tratar dos juros altos, não é mesmo? É provável que você já tenha lido ou ouvido falar em algumas delas. Há, inclusive, uma que trata de raízes sociológicas para o fato de tratarmos o valor do dinheiro igual no tempo. Não retiro o mérito dessas teorias, mas permita que eu trate aqui apenas desse engodo chamado risco de crédito.

É um tanto quanto prazeroso pensar em teorias da conspiração e desdizer da boa técnica quando achamos razões sociológicas para explicar juros altos no Brasil. Seria assim um sintoma de nossa ignorância o fato de acharmos que R$ 60 hoje são iguais a R$ 60 daqui a um mês. E justamente por isso mandamos a gentil moça do caixa passar a conta no crédito. Para mim essa explicação não é muito diferente daquela que dizia que uma inflação de 90% ao mês não é nada mais do que inércia.

Isto porque, dá trabalho reconhecer o fato de que nós temos uma das burocracias jurídicas mais caras e ineficientes do mundo. Dá vergonha dizer que em nosso país até o passado é incerto, dado que a qualquer momento um juiz bem intencionado pode mudar o curso dos fatos. A isso, leitor, os economistas dão o pomposo nome de insegurança jurídica e o culpam por nosso excessivo risco de emprestar os tais R$ 60.

Você pode achar que a Presidente tem razão em culpar os bancos. Você pode concordar com o ministro da fazenda e acreditar que os lucros dos bancos são exagerados. Mas você não pode negar que os incentivos a deixar de pagar aquela conta são excessivamente elevados em nosso país. Talvez você sofra alguma punição, como ter seu nome colocado em algum cadastro negativo, e isso gere algum transtorno. Mas, acredite, há muitas pessoas dispostas a passar por isso. O simples fato de você poder deixar de pagar uma conta e isso demorar a ser resposto a quem lhe emprestou aquela quantia causa uma distorção enorme no preço do dinheiro.

O problema da minha geração de economistas é precisamente o de convencer a nossa sociedade do fardo que é ter um sistema judiciário ineficiente. É uma tarefa inglória e demasiadamente complexa, haja vista que a nossa formação econômica está intimamente ligada a um regime cartorial, centralizado e extremamente ineficiente. A economia política é igualmente desafiadora. Mas, convenhamos, lidar com uma inflação de 2.000% em 1993 também parecia a priori um problema sem solução, não é mesmo?

Reconhecer o tamanho do desafio é justamente o primeiro passo para discutir as soluções adequadas. Curiosamente, quando muitos de nós pensam que o Brasil já está em franco enfrentamento desse problema, a verdade é que estamos ainda começando o jogo. Estamos ainda na fase do voluntarismo, aquela etapa em que achamos que os juros são altos por mera ganância de meia dúzia de banqueiros mal intencionados. Há, portanto, um caminho extremamente doloroso a percorrer.

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