Há evidências de precarização do trabalho no Brasil?

Há uma discussão bastante em voga em certos meios chamando atenção para uma espécie de precarização do trabalho no país, movimento apelidado de "uberização". Isto é, a proliferação de postos de trabalho sem uma rede de proteção social como aquela disponível para empregados com carteira assinada. Com base na evidência disponível, é mesmo possível afirmar esse tipo de coisa? Vamos aos dados...

Para tentar responder essa pergunta, precisamos antes de tudo definir o que seria um trabalho não precário. Na falta de definição melhor, vamos usar como proxy o trabalho com carteira assinada. A ideia aqui, por suposto, é verificar o comportamento dessa variável ao longo do tempo, bem como a sua representatividade dentro da população ocupada. Em palavras outras, quanto da população ocupada é composta por pessoas com carteira assinada.

Os dados que podemos utilizar para isso são os da hoje extinta Pesquisa Mensal do Emprego (PME) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua). Os resultados extraídos das duas pesquisas, adianto, não são comparáveis. Mas, para hoje é o que tem...

Primeiro, vamos à PME, que é uma série um pouco mais longa. Nela, peguei os dados da população ocupada e verifiquei as diversas categorias. A que nos interessa aqui é a empregado com carteira assinada. De posse dessa categoria, nós verificamos a representatividade dela na população ocupada, isto é, o seu percentual. O gráfico abaixo ilustra.

Para a amostra disponível, o emprego com carteira assinada representou em média 49,56% da população ocupada, com um máximo em 55,66%. Abaixo, o boxplot da série.

O primeiro quartil termina em 45,56% e o terceiro em 53,95%, com um IQR de 8,38. Em outras palavras, é possível dizer que o emprego formal ou não precário por assim dizer representa na amostra da PME mais ou menos metade da população ocupada.

Agora, vamos à PNAD? Nessa pesquisa, pegamos agora o emprego privado com carteira assinada, que é um pouco diferente do emprego com carteira assinada que vimos anteriormente. O emprego privado com carteira é um subconjunto do emprego com carteira, por assim dizer. Naturalmente, por suposto, sua participação é menor. Mas como o que importa aqui é verificarmos a tendência, ploto o gráfico abaixo.

A amostra da PNAD vai de março de 2012 a junho de 2019, está baseada em trimestres móveis e não pode ser comparada à PME, por questões metodológicas. Observe, entretanto, que na ponta das séries, o comportamento da nossa variável é similar, com um máximo ali em 2014 e depois queda. Abaixo o bloxplot.

A nossa série tem uma média de 37,95%, com o primeiro quartil terminando em 36,68% e o terceiro quartil em 38,99%. O IQR aqui é de 2,31.

E aí?

Com base nesses dados, um leitor desavisado poderá concluir que existe evidência de precarização do trabalho, uma vez que o emprego com carteira reduziu sua participação na população ocupada. Qual é o problema dessa conclusão?

O problema é que até aqui nós não adicionamos na nossa análise uma variável muito importante no mercado de trabalho: a taxa de desemprego. Tipicamente, movimentos de formalização como o ilustrado pelo primeiro gráfico estão associados a redução da taxa de desemprego. Isto é, há uma correlação entre taxa de desemprego e emprego com carteira. Para ilustrar, ploto o gráfico abaixo.

Isso dito, como no período recente houve um aumento substancial da taxa de desemprego, é esperado que a taxa de emprego com carteira sobre a população ocupada caia. Isso, por si só, não pode ser caracterizado como um movimento de precarização do trabalho no Brasil. Seria preciso observar uma redução da taxa de desemprego que não seja acompanhada por um aumento do emprego formal para dizer que há precarização do trabalho no país. Supondo que o emprego com carteira seja uma boa proxy para emprego não precário.

Em outras palavras, a evidência disponível não dá suporte para a hipótese de precarização do trabalho no país.

Um outro ponto é que, como revela os dados da PME, em média o emprego com carteira representou cerca de metade da população ocupada. No melhor momento, a formalização atingiu 55%. Significa dizer que mesmo com a taxa de desemprego abaixo da taxa natural, pouco menos da metade da população ocupada não estava sob o regime de carteira assinada. 

Será, portanto, que a CLT é um bom regime para o mercado de trabalho? Pensa aí...

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Como de praxe, os códigos que geraram o post estão disponíveis no Clube do Código.

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