Dezembro

Texto escrito em Dezembro de 2009


Nos últimos anos tenho tido um sentimento paradoxal pelo mês de dezembro. Não é coisa outra que não seja uma caduquice precoce, dessas de meia-idade. O fato é que me sinto o melhor dos homens na primeira quinzena do referido mês. Vai chegando o dia 20 e lá estou eu, mergulhado em profunda melancolia. Apesar de parecer ao leitor cético mais uma patologia dos tempos modernos, é coisa que se explica.

Os primeiros quinze dias são uma delícia. Vejo-me pensando no ano que se passou, nas coisas boas que aconteceram e nos erros que devo parar de cometer – sim, eu tenho um senso crítico, apesar de não parecer. São nesses dias que se concentra a maioria das comemorações, churrascos, almoços, amigos-ocultos, festinhas e qualquer outro nome que o leitor lembrar. Uso e abuso de antiácidos e energéticos para dar conta do ritmo enlouquecedor de eventos sociais que se tem de ir por essas datas. É claro que faço tudo com dedicação, disciplina e gosto. Não há outra época do ano que se concentrem tantas demonstrações de amizade e carinho pelo próximo. É tudo de encher os olhos.

A cruz, porém, começa a aparecer precisamente no dia 20 de dezembro, aniversário da minha afilhada, única, por assim dizer. Deveria ficar feliz, afinal é data comemorativa, cheia daquelas presepadas típicas. Não digo por mal, até porque a amo, a tenho sob o mais profundo afeto. Ocorre que minha afilhada é filha, neta e sobrinha de uma classe média tola e com poucas virtudes. E isso me deprime enormemente.

As conversas são sempre chatíssimas. O leque de temas é até vasto e, certas vezes, até complexo. O problema é que há sempre um denominador comum: compras. A viagem começa muito bonita, com narrações cheias de detalhes dos lugares por onde o cidadão mediano passou, mas sempre desembocam em alguma louça, câmera ou perfume. E daí a mesa logo se manifesta, querendo saber detalhes e mais detalhes do tal apetrecho e claro, dicas de onde comprar, de como comprar e por ai vai.

Nisso já me acho murcho. Vou perdendo minhas forças e me embebedo, de modo literal – confesso ao prezado leitor. Minha paciência não resiste à primeira câmera ou ao primeiro perfume francês. Os poucos interlocutores que ousam continuar testando-a são tratadas com fina educação – esmerada em muitos anos de estudo formal.

E daí para o restante do mês só tende a piorar. Já faz tempo que não gosto dos Natais. Os vejo com imenso desgosto e irritação. Há razão, claro: minha família se descentralizou. Na minha infância digo que passava um longo período do ano pensando no Natal. Nos presentes que poderia receber, nas pessoas da família que poderia matar as saudades e por ai ia. Mas as coisas também nesse campo deixaram de existir. Hoje, as reuniões familiares são espaçadas, cada um no seu clã e eu junto às minhas garrafas de Casal Garcia.

No exterior – da minha casa – a coisa é ainda pior. As ruas estão todas tomadas por gente de pior educação que o normal. Sujam tudo, ignoram o sinal vermelho, roubam idosos e por ai vai. As crianças parecem tomadas por um espírito satânico impressionante. Gritam, aterrorizam a paz alheia e ignoram qualquer pedido de silêncio. Os antros do consumo (shoppings) estão todos lotados – o perto aqui de casa acabou não resistindo e até pegou fogo! Cheios de gente estressada, de crianças chorosas e reclamonas e coisa que o valha. É o inferno!

O período entre o Natal e o Ano Novo, esse sim, é o pior de todos. Fico entre uma recuperação pelas garrafas de vinho abertas, pelas rabanadas, pastéis e perus comidos e pela total falta de motivação em por os pés para fora de casa. Neste ano atípico ainda acrescente o fato de que terei de trabalhar no interstício – coisa que só havia feito uma vez em toda minha curta vida, nos outros todos tirei férias.

Mas, quando tudo parece perdido, eis que chega o dia 31 de dezembro e a hora de dar adeus. Fico feliz de novo. Aqueles dez dias de sofrimento, depressão e estresse já se foram. Agora é hora de comemorar a vinda de mais um ano, abraçar (ou telefonar para) os amigos, beber algumas taças de espumante e, claro, tomar um banho de sal grosso: só para dar sorte. Janeiro chega, o sol parece escaldante, mas eu lembro que estou no Rio e a praia é logo ali. Dou graças a Deus e me despeço de dezembro, com um sentimento um tanto quanto contraditório. Se de um lado estou aliviado, do outro já sinto saudades da imensidão de comemorações, amigos-ocultos, almoços de confraternização com uma infinidade de pessoas e por ai vai. Não é outra coisa que não seja sintoma de caduquice aguda, vá saber. Amanhã procuro o doutor para me informar melhor...

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