Amores Urbanos: capítulo 2

Não me lembro ao certo quanto tempo permaneci ali, naquele meio-fio; só o que me recordo, e isso é até meio irônico de se dizer, foi a minha vida sendo passada em revista. Todos os acontecimentos que de uma forma ou de outra me levaram até aquele momento. Pensei na infância. Não em toda ela, porque para isso haveria de ter muito mais álcool e porrada envolvida.

Uma época em especial me veio à cabeça. O momento em que pela primeira vez desde então haveria de ter um genuíno contato com o sexo oposto. Contato não tão casual, como se tornaria rotineiro ao longo da minha vida, mas possivelmente a nascente de todo aquele comportamento. A primavera de 1993, sem forçar muito a memória, foi a melhor estação que já passei. Hoje, precisamente aqui na época em que escrevo estas páginas, olhando com olhos distantes e já sem compromissos com quem quer que seja, diria que todo homem deve se recordar de algum tipo de felicidade cósmica, onde todos os pequenos mundos de seu universo encontram-se em harmonia. O meu certamente existiu e fora naquele longínquo ano.

Lembrei específica e tenazmente da melhor partida que fiz pelo time de futebol do colégio. Valia o campeonato estadual de escolas particulares. A pressão era grande, mas a expectativa em alcançar o troféu e ter meu nome marcado em um pequeno pedaço da História – ao menos a da minha escola – me trazia uma imensa motivação. Não posso aqui dizer meias verdades: o time era fraco do goleiro ao centroavante. Chegamos à final regados que fomos por um misto de sorte e algum suspiro de inspiração. O grupo era unido e, como dizem os críticos da bola, era bastante “eficiente”. Afinal, se o que vale é bola na rede, para que jogar bonito?

Marquei três gols, sendo um classificado pelo professor de educação física como “antológico”. Na época não sabia ao certo se isso era bom ou ruim, mas os beijos e abraços não poderiam ser outra coisa que não fosse bom. Vencemos e eu fui coroado como o melhor jogador do campeonato. Nada mal para um até então tímido e franzino morador da Tijuca.

O jogo da final, os gols, o professor, os jogadores, tudo enfim não fazem parte, diretamente, da cena que lembrei naquele meio-fio. Servem apenas de ante-sala para que o leitor compreenda a motivação da ninfeta Fernanda. Ela foi meu primeiro amor urbano, por assim dizer. Graças ao feito então conquistado, pude tirar proveito de um tipo de assédio que qualquer homem reza para ter: o de mulheres querendo algo sexual de você. Acho até hoje incrível o fascínio que um simples jogo de futebol pode exercer seja sobre um homem ou sobre uma mulher.

De todas as minhas “fãs”, por assim dizer, a única que marcou minha lembrança foi por suposto Fernanda. Cabelos castanhos cacheados, pele branquinha, seios desenvolvidos, tipo mingonzinha e um sorriso um tanto quanto diabólico. No dia seguinte ao que ficou titulado como “jogo da década”, já que todos os jogadores ali se despediam da escola, Fernanda me convidou para sair. O fez de forma bastante heterodoxa para uma menina de quatorze anos. Esperou sorrateiramente que eu fosse ao banheiro e que me encontrasse sozinho por lá. Adentrou o recinto e escreveu no espelho a seguinte frase: “Você quer sair comigo?”. Completava a audácia dois quadrinhos com as seguintes opções de possível resposta: “Sim” e “Talvez”.

A auto-confiança daquela morena de olhos castanhos claros a impedia de colocar um “não” como opção. E, claro, para retaliar qualquer possibilidade de toco, ficou ali aguardando que eu pintasse a opção que escolheria. Tomou antes, é claro, o cuidado de trancar a porta do banheiro para que não fossemos interrompidos por um peralta desavisado. Simplesmente diabólica a pequena morena.

 

- Anda! Escolhe e te dou um presente aqui mesmo – me ordenou.

 

Os tempos, leitor, eram outros e antes de chegar aquele meio-fio eu tinha sido um menino que não sabia muitas coisas da vida. É certo que para a idade eu era muito pouco desenvolvido para as coisas do coração. Até aqueles anos e antes de ser abruptamente cortejado por Fernanda, meu único pensamento na vida era jogar futebol. Não pensava em outra coisa que não fosse uma partida de futebol. Na quadra da escola, na rua de casa, no campinho perto da escola, na praça, qualquer lugar era perfeito para o contato com a redonda. E eu era muito bom naquilo. Não é arrogância, saiba o leitor disso. Afinal, você me encontrou jogado que fui na sarjeta. Estou humilhado o suficiente para não ser arrogante contigo. A verdade é que eu jogava muito bem. Nas peladas perto de casa ou no colégio, era o primeiro a ser escolhido, fosse quem fosse o “tirador de time”. Era da seleção da sala. Depois cheguei à seleção da escola. Vesti a camisa do Botafogo durante cinco anos e tive o prazer de vestir por algumas vezes a amarelinha nas categorias de base. Não qualquer camisa, mas a 10, que me caía muito bem por sinal. A braçadeira de capitão nunca quis. Essa eu sempre terceirizei para algum zagueiro brutamonte que impusesse respeito ao time adversário. Batia falta, pênalti e escanteio. “Assombrosamente bem”, era o que dizia um velho senhor aposentado que morava perto de mim.

Minha compulsão pelo futebol me trouxe Fernanda. Mas não me ensinou como lidar com a situação. Fiquei ali, de frente para ela, naquele banheiro fedendo a urina, meio que zonzo por tamanha audácia na iniciativa. Enfrentava zagueiros carrancudos com a alegria de quem toma um sorvete com o pai em uma tarde de domingo, mas não conseguia balbuciar um simples “sim” diante daquela morena mignon cheia de si.

 

- Vou encarar o silêncio como um sim! – pegou o baton e marcou o quadrinho respectivo – me pega às 20h, na minha casa, amanhã. O endereço vai estar na sua mesa quando voltar para a sala – destrancou a porta e saiu, como se acabara de fazer a coisa mais natural do mundo.

 

O sorriso só veio uns dez minutos depois, quando recuperei o fôlego e pude demonstrar alguma reação pelo estranho pedido. Como nada pude dizer, acabei não ganhando o tal do presente que ela prometera de inicio. “Provavelmente um beijo”, pensei naquele momento. E tido o pensamento, somente depois disso, me veio o sorriso. Imaginei o beijo, tolo que era, é mole! Senão estivesse tão bêbado, tão cheio de sangue escorrendo pelo nariz e quase em transe inconsciente, eu provavelmente estaria rindo de mim mesmo ali caído naquele meio-fio, quando a lembrança me veio à mente.

O futebol, ao contrário de Fernanda e tantas outras meninas e mulheres que conheci vida a fora, foi meu grande amor. Não um amor urbano, mas uma paixão perene, do tipo que fica mesmo depois de dizer adeus. Enquanto todos os outros garotos da minha idade estavam brincando de pêra, uva, maça e salada-mista, eu estava lá, em algum lugar, jogando bola. Chutes solitários na redonda, praticando minha maior paixão. Adorava o jogo, venerava compulsivamente tudo o que dizia respeito a futebol. Curtia as infinitas horas de treino, as concentrações, as dicas do “professor”, a tensão e, com certa timidez respeitosa, até Fernanda por os pés em minha vida, ouvia atônito os gritos opacos que vinham da arquibancada. Meu nome, Mário, gritado sonoramente por cada vez mais vozes, conforme ia evoluindo no esporte.

É certo, hoje tenho mais ciência disso, que só dei conta do efeito que meus dribles e arrancadas provocavam nas arquibancadas quando aquela diaba entrou em minha vida. Até Fernanda aparecer naquele banheiro fétido, os gritos femininos que vinham da arquibancada me eram todos estranhos e, até certo ponto, ignorados. A soma de todos eles, não posso negar, provocava certa excitação em meu corpo, que me deixava ainda mais temível em campo. Virava um bicho indomável e quase impossível de ser parado. Vorazmente determinado a driblar qualquer um que viesse a meu encontro e querendo como recompensa que os gritos fossem cada vez mais ensurdecedores. Mas até então pouco distinguia o gritos. Para mim não havia diferença entre os gritos femininos e os masculinos.

Não se iluda o leitor: apesar de tímido, o assédio me era desejado. Os gritos, quanto mais altos fossem, mais me estimulavam a prosseguir jogando bem. O fazia pelo futebol, mas também de forma intencional: que todos reconhecessem meu talento. Toda pessoa que tem sua arte ou seu dom, como preferir, demonstrada em público precisa de certa aprovação para prosseguir. Comigo nunca foi diferente. Quando o silêncio tomava conta das cadeiras, sabia que ou meu time ou eu mesmo não jogávamos bem. Era para mim o melhor indicador de quão perto estávamos da vitória. Quando os gritos e berros se tornavam quase que enlouquecedores, era quase que abduzido do meu corpo e tomado por uma espécie de espírito redentor. O cansaço, a dor e mesmo a intimidação adversária não eram adversários a altura da minha vontade de agradar a todos que ali estavam. Mas até aquela época, essa imensa massa de apoiadores – ou críticos, dependendo de quão bem ou meu time ou eu estávamos jogando – era para mim inequivocamente assexuada. Eram apenas vozes, destilando uma hora o elixir de minha glória ou o centeio de minha desgraça. Nenhuma menina em especial me saltava os olhos. E não reparava se a torcida era predominantemente masculina ou feminina. Isso, claro, tudo antes daquela pobre diaba entrar em minha vida.

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