Ontem, enfim, o governo sinalizou medidas para conter a sangria das distribuidoras de energia elétrica. As mesmas sofrem problemas de fluxo de caixa por um motivo simples. Elas devem contratar energia em leilões de médio prazo, promovidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), para atender ao mercado "cativo", isto é, nós consumidores residenciais. Ocorre que os leilões realizados têm tido oferta diminuta - o que pode ser considerado um problema de incentivos -, fazendo com que as distribuidoras tenham uma parcela da sua demanda de energia não atendida. Diz-se, nesse sentido, que elas estão "descontratadas", não possuem contratos de energia suficiente. Desse modo, têm de recorrer ao mercado de curto prazo para fechar a conta entre oferta e demanda por energia elétrica. Como o preço dessa energia de curto prazo está no limite regulatório (mais de R$ 800 por megawatt-hora), dado o uso intensivo de termoelétricas (cujo insumo é mais caro que a água das hidroelétricas), o fato de terem de recorrer ao mercado de curto prazo gera problemas de caixa para as distribuidoras. O imbróglio, diga-se, foi causado por problemas estruturais, dada a fixação do governo em perseguir a modicidade tarifária, isto é, menor impacto sobre as tarifas para o consumidor.
Esses leilões de energia são baseados no critério de menor tarifa. Ofertantes, então, apresentam propostas de projetos de usinas movidas à óleo diesel, gás natural, vento, sol etc. O problema é que a fixação do governo em perseguir a modicidade tarifária têm colocado o preço desses leilões em patamares muito aquém do necessário para cobrir certos investimentos. Desse modo, a oferta fica comprometida, gerando a descontratação das distribuidoras citada. A carioca Light, por exemplo, têm uma descontratação de cerca de 5%, o que a faz ter uma "exposição involuntária" no mercado de curto prazo. A modicidade tarifária, palavrinha bonita, tem, desse modo, causado todos os problemas que estamos assistindo há tempos no setor elétrico.
O anúncio do governo, nesse contexto, soou, uma vez mais, como um remendo. O pacote de R$ 12 bilhões (insuficiente para quem considera que o rombo é de R$ 18 bilhões), que será usado para atenuar os problemas das distribuidoras ESSE ANO, apenas empurra para debaixo do tapete os problemas. Como fica claro no parágrafo anterior, a intervenção do governo em querer fixar o preço da energia nesses leilões é o que gerou, em primeiro lugar, toda essa confusão. Acaso os preços fossem coerentes com os investimentos realizados no setor, as distribuidoras não estariam descontratadas, o que não geraria problemas de fluxo de caixa. Um problema, aliás, que qualquer gestor minimamente informado sabe que trata-se de um clássico erro de planejamento. Nesse caso, não das distribuidoras: de quem administra o setor elétrico.
Os R$ 12 bilhões, diga-se, virão do Tesouro (R$ 4 bi), em novo aporte à CDE (Conta de Desenvolvimento Energético) e de empréstimo contratado pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (a CCEE)! Esse último foi de uma criatividade tremenda, devo confessar. Só tem que explicar para o governo que a CCEE não pode fazer empréstimos: para isso é necessário alterar o estatuto da entidade. Ademais, claro, você acha que será feito em qual banco? Provavelmente naquele localizado na Avenida Chile, que tem recebido uma montanha de recursos do, ops, Tesouro - o BNDES já recebeu aportes na casa de R$ 400 bilhões. Ou seja, leitor, você está vendo essa foto ai em cima, que ilustra o post? Pois é, na hora de baixar a tarifa de energia no ano passado, a presidente fez um circo, declarando que:
"No início de 2013, a conta de luz ficará até 16,2% mais barata para as residências e até 28% para as indústrias, dependendo do nível de tensão. Será a maior redução nas tarifas de energia elétrica já registrada no Brasil (…) [A redução] trará menos gastos para as famílias e mais competitividade para nossas indústrias, que poderão oferecer produtos mais baratos para toda a população”.
Para quem conhece, entretanto, o setor elétrico, era bastante claro que essa redução, fruto de oportunismo na renovação de contratos de geração de energia, era para inglês ver. O modelo de menor tarifa, iniciado ainda no governo Lula e levado à exaustão na atual administração, é a aplicação genuína do desconhecimento sobre economia financeira. Coisas, afinal, que não se pagam não podem se iniciar, logo se eu ofereço um preço muito baixo, não haverá quem queira colocar dinheiro para realizar esse investimento.
O que eu achei engraçado (para não dizer outra coisa) foi o patético anúncio dessa "engenharia financeira" feito ontem pelos presidentes da Câmara de Comercialização (CCEE), da ANEEL e da EPE (Empresa de Pesquisa Energética) e pelo nosso gerente da "contabilidade criativa", Arno Augustin. Eles se esquivaram completamente em falar de aumento de tarifa para o consumidor. Alegaram, para as insistentes perguntas dos jornalistas presentes na coletiva, que não sabiam, de fato, se seria necessário aumentar a tarifa. Ora, ou o governo aumenta a tarifa, fazendo com que o erro de planejamento seja repassado para o consumidor, ou continua bancando com o próprio bolso (ou você acha que o Itaú ou o Bradesco emprestarão R$ 8 bilhões para a CCEE, uma instituição sem fins lucrativos?). Mas aumentar a tarifa esse ano, depois da Dilma ter dito o que eu destaquei aí em cima, pegaria mal, não é mesmo? Em ano eleitoral, a presidenta deve ter dito: arrumem um jeito! E batido na mesa...
É só ir somando, leitor, para ver que o critério de menor tarifa não se sustenta. Pegue os quase R$ 8 bilhões de repasse à CDE (Conta de Desenvolvimento Energético) ano passado, adicione R$ 9,8 bilhões de empréstimos às distribuidoras também em 2013, coloque os R$ 9 bilhões previstos no orçamento desse ano e mais os R$ 12 bi agora anunciados. É muito dinheiro! Percebeu como a conta da menor tarifa é na verdade falsa? Todo esse montante acaba sendo pago em forma de impostos, não tem muito jeito. Uma hora o Tesouro vai ter de aumentá-los, dado o crescimento estrondoso das despesas.
Lembra do contingenciamento de R$ 44 bilhões anunciado no dia 20/02? Pois é. Como eu escrevi aqui, o "corte" de despesas era na verdade falso, porque ou eram reestimativas ou corte sobre despesas que na verdade só estavam programadas no maravilhoso mundo do orçamento, o tal "vento". Não se levou naquele momento em consideração o problema energético. Agora sabemos que você já pode retirar, no mínimo, R$ 4 bilhões do esforço fiscal. Acaso o BNDES (ou a Caixa ou o Banco do Brasil) não tenha em caixa R$ 8 bilhões livres para emprestar à CCEE, você pode adicionar esse montante também. E tudo continua sem resolução: apenas foi adiado para depois do pleito eleitoral. Mas, como o desemprego está baixo, para que se preocupar com isso, não é mesmo?
Essa forma desastrosa de interferir na economia, diga-se, está com os dias contados. O governo fez um esforço tremendo em controlar diretamente vários preços da economia. Os chamados preços administrados, notadamente no grupo energia e combustíveis, causaram impacto de cerca de meio ponto percentual no superávit primário nos últimos anos. Isto porque, para mantê-los artificialmente baixos, o governo teve de fazer renúncias fiscais cirúrgicas, o que gerou impacto no superávit. Ocorre que essa forma de "controlar" a inflação não é sustentável. Como pode ser observado no gráfico abaixo, os preços administrados já mostram tendência de alta nesse início de ano: é a inflação represada dos outros anos, contida pela intervenção do governo. Enquanto os preços livres (a linha vermelha) ensaiam uma redução, os administrados (a linha azul) seguem outro caminho.
Update: acabo de ler no Valor que o empréstimo a ser feito pela CCEE foi apelidada de "Contabilidade Criativa de Energia Elétrica".