Determinantes do Preço do Ouro: VAR + Linguagem R

Introdução

O ouro, ao longo da história, tem desempenhado um papel multifacetado na economia global. Visto ora como uma commodity industrial, ora como um ativo monetário, sua principal aclamação nos tempos modernos é a de um “porto seguro” (safe haven). Em períodos de incerteza econômica, instabilidade geopolítica ou pressões inflacionárias, investidores e bancos centrais recorrem ao ouro como uma reserva de valor confiável. No entanto, a dinâmica de seu preço é complexa, sendo influenciada por um conjunto inter-relacionado de fatores macroeconômicos e financeiros.

Este artigo se propõe a investigar empiricamente essa complexa teia de relações. Utilizando um ferramental econométrico robusto, especificamente um modelo Vetorial Autorregressivo (VAR), buscamos desvendar e quantificar o impacto de variáveis-chave — como a taxa de câmbio do dólar, a política monetária e a incerteza econômica global — sobre as flutuações no preço do ouro.

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Motivação

A motivação para este estudo reside na crescente complexidade do cenário macroeconômico global. A recente volatilidade nos mercados, as pressões inflacionárias pós-pandemia e as crescentes tensões geopolíticas reacenderam o debate sobre o papel do ouro nas carteiras de investimento. Compreender os seus determinantes não é apenas um exercício acadêmico; é uma necessidade prática para gestores de portfólio, formuladores de políticas e investidores que buscam navegar em águas econômicas turbulentas.

A análise univariada ou modelos de regressão simples são insuficientes para capturar a natureza dinâmica e as interdependências entre o ouro e a macroeconomia. Por exemplo, o preço do ouro não apenas reage a uma mudança na política monetária do Federal Reserve, mas também pode influenciá-la, dado seu status como um indicador de expectativas de inflação. É essa endogeneidade e causalidade mútua que justifica a escolha de uma metodologia mais sofisticada.

Objetivo

O objetivo central desta análise é investigar a relação dinâmica entre o preço do ouro e um conjunto de variáveis macroeconômicas selecionadas. Especificamente, buscamos responder às seguintes questões:

  1. Qual é a magnitude e a direção da resposta do preço do ouro a choques inesperados (inovações) no valor do dólar americano?
  2. Como a postura da política monetária, representada pela inclinação da curva de juros e pela liquidez monetária, afeta o ouro?
  3. De que forma a incerteza na política econômica global se transmite para o mercado de ouro?

Para alcançar este objetivo, construiremos e estimaremos um modelo VAR, que nos permitirá não apenas avaliar as relações contemporâneas, mas também traçar os efeitos de choques ao longo do tempo através de Funções de Impulso-Resposta (FIR) e Decomposição da Variância do Erro de Previsão (FEVD).

Metodologia e Modelo

A principal ferramenta econométrica empregada é o modelo Vetorial Autorregressivo (VAR). Proposto por Christopher Sims (1980), o VAR é um modelo de séries temporais multivariado que trata todas as variáveis como endógenas. Isso significa que o modelo não impõe restrições teóricas a priori sobre a causalidade, permitindo que os dados revelem a estrutura de interdependência dinâmica entre as variáveis.

Um modelo VAR(p), onde p é o número de defasagens, pode ser representado matematicamente da seguinte forma:

    \[\mathbf{Y}_t = \mathbf{c} + \mathbf{A}_1 \mathbf{Y}_{t-1} + \mathbf{A}_2 \mathbf{Y}_{t-2} + \dots + \mathbf{A}_p \mathbf{Y}_{t-p} + \boldsymbol{\varepsilon}_t\]

Onde:

- \mathbf{Y}_t é um vetor (k \times 1) das *k* variáveis endógenas no período t.

- \mathbf{c} é um vetor (k \times 1) de interceptos.

- \mathbf{A}_i são matrizes (k \times k) de coeficientes para cada defasagem i.

- \boldsymbol{\varepsilon}_t é um vetor (k \times 1) de erros de previsão (ou inovações), que são assumidos como ruído branco.

A implementação empírica desta análise é realizada na linguagem de programação R, um ambiente de software livre amplamente utilizado para computação estatística e gráfica. A escolha pelo R se deve à sua vasta coleção de pacotes especializados em econometria de séries temporais. Os principais pacotes utilizados neste estudo são:

  • quantmod e fredr: Para a coleta automatizada de dados financeiros e macroeconômicos de fontes confiáveis como o Yahoo Finance e o Federal Reserve Economic Data (FRED).
  • tidyverse: Um ecossistema de pacotes (dplyrggplot2, etc.) para a manipulação, transformação e visualização de dados de forma intuitiva e eficiente.
  • vars: O pacote central para a estimação, diagnóstico e análise de modelos VAR, incluindo a seleção da ordem ótima de defasagens e a geração de funções de impulso-resposta.
  • mFilter: Utilizado para aplicar o filtro de Hodrick-Prescott, uma técnica para decompor uma série temporal em seus componentes de tendência e ciclo.

Fontes, Dados e Seleção de Variáveis

A robustez de qualquer modelo econométrico depende fundamentalmente da qualidade e da relevância teórica dos dados utilizados. Nossa análise abrange o período de janeiro de 2005 até a data presente, com frequência mensal.

A tabela a seguir detalha as variáveis selecionadas para o modelo VAR, descrevendo sua função e a relação teórica esperada com as variações no preço do ouro.

Variável (Símbolo) Descrição Relação Teórica Esperada com o Preço do Ouro Mecanismo de Transmissão (Justificativa)
Índice do Dólar (DXY) Mede a força do dólar americano em relação a uma cesta de moedas de importantes parceiros comerciais. Negativa (-) Efeito de Precificação: O ouro é uma commodity global precificada em dólares. Quando o dólar se fortalece (DXY sobe), o ouro se torna mais caro para investidores que operam com outras moedas, o que tende a reduzir a demanda global e, consequentemente, pressionar seu preço para baixo.
Curva de Juros (T10Y2Y) Diferença (spread) entre os rendimentos dos títulos do Tesouro dos EUA de 10 anos e 2 anos. Negativa (-) Custo de Oportunidade e Aversão ao Risco: 1) Taxas de juros mais altas (curva mais inclinada) aumentam o custo de oportunidade de manter ouro, um ativo que não gera rendimentos. 2) Um achatamento ou inversão da curva (T10Y2Y caindo) sinaliza uma possível recessão, aumentando a demanda por ouro como ativo de “porto seguro”.
Hiato Monetário (M2_GAP) Componente cíclico da oferta monetária (M2), medindo desvios da liquidez em relação à sua tendência. Positiva (+) Hedge Inflacionário: Uma expansão monetária significativa (hiato positivo) pode gerar expectativas de inflação no futuro, erodindo o poder de compra da moeda fiduciária. Nesse cenário, os investidores buscam o ouro como uma reserva de valor para se protegerem da inflação, elevando sua demanda e preço.
Incerteza Global (GLOBAL_UN) Índice que mede o nível de incerteza relacionado à política econômica em escala global. Positiva (+) Ativo de Porto Seguro (Safe Haven): Em períodos de elevada incerteza (geopolítica, comercial, etc.), a aversão ao risco aumenta. Investidores realizam um movimento de “fuga para a qualidade”, desfazendo-se de ativos de maior risco e buscando refúgio em ativos considerados seguros, como o ouro, o que impulsiona sua cotação.

Após a coleta, os dados são consolidados em uma única base de dados mensal. As transformações necessárias, como o cálculo da diferença logarítmica e a aplicação do filtro HP, são realizadas para preparar as variáveis para a etapa de modelagem. O próximo passo, que será detalhado posteriormente, envolve a análise exploratória dos dados e a estimação do modelo VAR.

Construindo um modelo para o preço do ouro

1. Bibliotecas

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2. Coleta de dados

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3. Análise Exploratória

Com as variáveis devidamente coletadas e tratadas, o passo seguinte é a análise dos dados. Esta etapa é crucial para entender as características individuais de cada série temporal e as relações estáticas entre elas, antes de procedermos à modelagem dinâmica.

A AED nos fornece uma intuição visual e estatística sobre o comportamento das variáveis.

3.1. Evolução das Séries Temporais

O primeiro gráfico exibe a evolução mensal do preço do ouro futuro (GC=F) desde 2005. Observamos uma clara tendência de alta no longo prazo, marcada por períodos de forte valorização, como a crise financeira de 2008-2011 e o período pós-pandemia a partir de 2020. A volatilidade também é uma característica marcante da série.

Para a modelagem, utilizamos a variação logarítmica do preço (GOLD_diff), que representa os retornos mensais. O gráfico de Decomposição STL para GOLD_diff é revelador. Ele decompõe a série em três componentes:

  • Tendência (trend): Mostra a direção de longo prazo dos retornos. Vemos que a tendência dos retornos flutuou, com períodos de retornos médios positivos e outros negativos.
  • Sazonalidade (season_year): Captura padrões que se repetem anualmente. No caso dos retornos do ouro, o componente sazonal é relativamente pequeno, indicando que não há um padrão mensal previsível muito forte.
  • Resíduo (remainder): Representa a volatilidade e os choques idiossincráticos não explicados pela tendência ou sazonalidade. Este é o componente mais volátil, como esperado para uma série de retornos financeiros.

O painel com a Evolução Mensal de todas as Variáveis Econômicas permite uma comparação visual. Notamos, por exemplo, a forte queda na curva de juros (T10Y2Y) e o pico no hiato monetário (M2_GAP) durante a pandemia de COVID-19, movimentos que coincidem com a forte alta no preço do ouro (GOLD).

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4. Testes de Estacionariedade

A modelagem VAR padrão exige que as séries temporais sejam estacionárias, ou seja, que sua média e variância não mudem ao longo do tempo. Séries não-estacionárias podem levar a regressões espúrias. Realizamos um conjunto de testes (ADF, KPSS e PP) para todas as variáveis do modelo (GOLD_diffDXYT10Y2YM2_GAPGLOBAL_UN). Os resultados indicam que todas as séries são estacionárias em nível (ordem de integração I(0)), o que nos permite prosseguir com a estimação do VAR sem a necessidade de diferenciação adicional.

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variavel ordem_integracao n
DXY 0 4
GLOBAL_UN 0 4
GOLD_diff 0 5
M2_GAP 0 6
T10Y2Y 0 4

5. Estimação do Modelo VAR

A “ordem” (p) de um VAR refere-se ao número de defasagens a serem incluídas como regressores. Uma ordem muito baixa pode não capturar toda a dinâmica do sistema, enquanto uma ordem muito alta pode levar a um sobreajuste do modelo. Utilizando o Critério de Informação de Akaike (AIC), o modelo sugere uma ordem ótima de p = 3 defasagens.

Com o modelo VAR(3) estimado, realizamos um teste de diagnóstico crucial: o Teste de Autocorrelação de Portmanteau para os resíduos. A hipótese nula (H0) é a de que não há autocorrelação nos resíduos. O p-valor resultante foi de 0.4183. Como este valor é muito superior aos níveis de significância usuais (e.g., 0.05), não rejeitamos a hipótese nula. Isso é um excelente resultado, pois indica que nosso modelo capturou com sucesso a dinâmica temporal dos dados, e os resíduos se comportam como ruído branco, validando as inferências que faremos a seguir.

6. Função de Impulso-Resposta

A FIR traça o efeito de um choque inesperado (uma inovação de um desvio-padrão) em uma variável sobre as outras variáveis do sistema ao longo do tempo.

O gráfico mostra a resposta dos retornos do ouro (GOLD_diff) a um choque positivo inesperado no índice do dólar (DXY). A interpretação é a seguinte:

  • Impacto Imediato: No primeiro mês após o choque (período 1), um fortalecimento inesperado do dólar causa uma queda estatisticamente significativa nos retornos do ouro. A linha preta está bem abaixo de zero, e o intervalo de confiança azul não cruza a linha do zero.
  • Dinâmica Temporal: O impacto negativo é mais forte no primeiro mês e depois se dissipa rapidamente, tornando-se estatisticamente indistinguível de zero a partir do terceiro mês.

Conclusão da FIR: Uma valorização súbita do dólar torna o ouro mais caro em outras moedas, gerando uma queda imediata em sua demanda e, consequentemente, em seu preço.

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7. Decomposição da Variância do Erro de Previsão

Enquanto a FIR mostra a direção do efeito, a FEVD nos diz a magnitude da importância de cada variável na explicação das flutuações futuras do ouro. O gráfico “Decomposição da Variância: Ouro Futuro” mostra a porcentagem da variância do erro de previsão do GOLD_diff que é atribuível a choques em cada uma das variáveis do modelo, para horizontes de 1 a 12 meses.

A análise do gráfico revela dois pontos principais:

  1. Predominância dos Próprios Choques: A maior parte da variância dos retornos do ouro (a grande área verde-água, GOLD_diff) é explicada por seus próprios choques passados. Isso é típico de ativos financeiros e indica que grande parte da volatilidade do ouro é intrínseca ao seu próprio mercado.
  2. Importância Relativa das Variáveis Macroeconômicas: Dentre as variáveis externas, o DXY (roxo escuro) é a que mais contribui para explicar as flutuações do ouro, embora sua contribuição seja modesta, estabilizando-se em torno de 5-7% da variância total. As demais variáveis, como Incerteza Global (GLOBAL_UN), Hiato Monetário (M2_GAP) e Curva de Juros (T10Y2Y), têm um poder explicativo muito limitado sobre a variância dos retornos do ouro neste modelo.

Conclusão da FEVD: Embora um choque no dólar tenha um impacto direcional claro e significativo (como visto na FIR), a maior parte da incerteza futura (volatilidade) do preço do ouro é determinada por fatores específicos do próprio mercado de ouro, e não pelas variáveis macroeconômicas incluídas no sistema.

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