Impeachment e reconstrução

Processos de impeachment deixam um gosto amargo na boca. O pós-impeachment é uma espécie de ressaca compartilhada por toda uma sociedade. Processo longo que mostra as entranhas do nosso sistema político. Mostra para quem quiser ver o quanto nossas instituições políticas asseguram o nosso subdesenvolvimento. Talvez hoje um pouco mais do que há 20 anos. Falta convergência sobre uma agenda mínima, que faria a renda per capita avançar de forma mais célere. Mas nem sempre foi assim. Em algum momento do passado recente, esse país se perdeu. De novo.

Voltemos um pouco ao passado. A década de 1980 foi terrível. O país vivia uma outra ressaca, forjada no pós 2º PND, donde se concluiu que a locomotiva não poderia parar, era preciso continuar crescendo. A marcha forçada, termo cunhado pelo economista Antônio Barros de Castro, nos trouxe desequilíbrio externo e, claro, uma hiperinflação. Destaca-se, aqui, a completa irracionalidade da política econômica. Um Banco Central que não podia cumprir o seu objetivo básico de existir porque o fiscal era um Deus nos acuda.

A reconstrução levaria duas décadas. Primeiro, foi preciso zerar a memória inflacionária, deflagrando assim o início do fim do processo hiperinflacionário. Para quem não lembra, a inflação acumulada em 1994 foi de 916,46%. Poucos países na História da humanidade tiveram números de inflação tão superlativos. Uma vez debelada a memória, era preciso atacar as causas, o vazamento de moeda promovido por governos perdulários. Sem a privatização da maioria dos bancos estaduais, como poderia o Banco Central controlar a liquidez da economia?

Mudanças dessa envergadura não se concretizam da noite para o dia. Sem poder contar plenamente com o fiscal, as outras turbinas precisaram trabalhar dobrado. A âncora cambial que vigorou no início do plano Real exigia juros astronômicos para poder funcionar. Era o preço que tínhamos de pagar por ainda não ter condições de ter um fiscal mais equilibrado.

E aqui a lembrança. A lei de responsabilidade fiscal, que seria uma espécie de cereja no bolo da reconstrução em curso, só seria aprovada em 2000. A Unidade Real de Valor, o ponto de início da retomada da moeda, datava de março de 1994! O caminho para acabar com o processo hiperinflacionário raramente é simples, por aqui não foi diferente.

Em meados de 2004, passada a maior parte dos efeitos da crise de confiança de 2002, parecia que o Brasil tinha encontrado o caminho da convergência. Afinal, elegia-se um governo de esquerda, notoriamente conhecido por sua agenda extremista. Mas a inflação convergia de forma consistente para a meta, um audacioso plano de mudança na composição da dívida pública era posto em prática, bem como superávits primários robustos iam fazendo parte da rotina.

Os ventos eram bons para a macroeconomia. Ademais, uma agenda micro parecia deslanchar. A agenda perdida, documento que continha diagnósticos e propostas de mudanças para diversos setores da economia brasileira, seria posta em prática? Tudo dava a crer que sim.

A conjuntura internacional era, nesse ponto, um doce frescor. Superávits em conta corrente tomaram conta do país entre 2003 e 2007. Os termos de troca, relação entre os preços dos bens e serviços que exportamos e dos que importamos, jogavam a nosso favor.

Ou seja, a reconstrução iniciada muitos anos antes, parecia em pleno vigor.

Mas então veio o impulso de volta ao passado. De repente, começamos a esquecer dos fundamentos. No fiscal, principalmente. As despesas cresciam consistentemente acima do PIB, motivo pelo qual propostas de ajuste já se faziam necessárias àquela época. Os avisos foram torpedeados pela então ministra-chefe da Casa Civil. O plano de ajuste proposto por Paulo Bernardo e Antonio Palocci seria tachado de rudimentar. Palocci sairia do governo, dando lugar a Guido Mantega. Uma agenda com cheiro de naftalina seria então posta em prática.

De repente, fazia sentido emitir dívida para financiar o BNDES. Os subsídios implícitos nos empréstimos do banco poderiam ser pagos só depois de dois anos. Uma contabilidade criativa ia tomando corpo nos porões da Secretaria do Tesouro Nacional. Era o jeito que o governo de então encontrara para não encarar a realidade: as despesas estavam crescendo muito acima do PIB.

De repente, o Banco Central entrou na onda. A convergência da inflação para a meta seria agora não linear. Toda a sorte de adjetivos, diga-se, foi utilizada para justificar o que não tinha justificativa: a aceleração da inflação. Um país que há muito pouco tempo havia tido inflação de mais de 900% poderia se dar ao luxo de esquecer?

Esquecemos. De repente, em uma economia com pleno emprego do fator trabalho nossos governantes e policymakers acharam que faria sentido baixar juros e aumentar ainda mais os gastos. As restrições no lado da oferta, que deveriam ser combatidas com melhoria do ambiente de negócios, foram atacadas por meio de uma política econômica expansionista.

Inflação, desequilíbrio externo e fiscal arruinado. Mas era preciso ganhar uma eleição, a de 2014. O que fazer? Pedalemos, todos. Na campanha, afinal, vale fazer o diabo. Depois a gente faz tudo diferente, coloca um ministro ultra-mega-ortodoxo, recupera confiança, faz o ajuste das contas e...

Faltou combinar com a base aliada e, claro, com a população. Um impeachment é um processo político com base jurídica. Só ocorre, diz a literatura, se uma conjunção de fatores está posta: perda de popularidade, processo de corrupção, crise econômica e perda da base no Congresso. Não ocorre, desse modo, por vontade de um grupo de pessoas, mas pela imposição das circunstâncias.

O erro, isso dito, não começou em 2014. A reconstrução do país foi interrompida em algum momento de 2005 e 2006, quando decidiu-se abandonar de forma gradual e progressiva os fundamentos. Agora, passado o processo de impeachment, o país pode querer voltar a eles. Em bases muito piores, diga-se.

O tecido social está desmantelado. As pessoas se agrupam em torno de agendas muito particulares. Cada grupo luta por determinado conjunto de coisas, de sorte que uma agenda pró-crescimento parece ser muito difícil de alcançar consenso.

Mas não foi sempre assim, perguntam alguns. Havia muitos críticos ao plano Real. Entre políticos e economistas. Diziam se tratar de um estelionato eleitoral. Poucos reconheceram, ex-ante, a maestria do que ali estava sendo posto. Não era consenso criar uma quase-moeda para debelar a memória inflacionária. Assim como não foi consenso acabar com o monopólio da Petrobras ou privatizar as empresas de telecomunicações.

A própria lei de responsabilidade fiscal contou com inúmeros críticos, dentre eles o Partido dos Trabalhadores.

Nesse contexto, não se espera que reformas estruturais, como a da Previdência e da legislação trabalhista, sejam postas sem discussão e crítica. São medidas necessárias para melhorar o fiscal e o ambiente de negócios, atacando assim aquela restrição de oferta da nossa economia. Ou a fazemos, ou não cresceremos nos próximos anos.

Os críticos, por suposto, estarão apostos, assim como estiveram em todos os momentos de avanço institucional. Cabe perguntar aqui se haverá uma liderança ou se a agenda de reformas, necessária para a reconstrução, continuará órfã. O governo Temer carece de apoio popular, o que lhe fragiliza de forma implacável na sua relação com o Congresso. Terá que ser hábil para negociar se, de fato, quiser por as reformas em execução. Não será nada fácil.

Isso dito, o cenário pós-impeachment mais provável é aquele que nos leva a um crescimento medíocre, mas positivo, a partir de 2017. A inflação converge lentamente para a meta, após anos de desaforo, o déficit em conta corrente se mantém na sua média histórica e o fiscal...

O problema na área fiscal é que alguns tentam lutar contra os números. As despesas crescem o dobro do PIB há mais de vinte anos. É trivial assim o problema. Será preciso, portanto, mexer nas regras que fazem a despesa ter esse comportamento. Isso acalentará fortes debates, incomodará muitos daqueles críticos, mas, paciência, faz parte da democracia.

Por longos anos interrompemos a reconstrução do país. O impeachment colocou a bola novamente em jogo. Em um campo muito pior do que era há dez anos. Mas, paciência, é hora de jogar...

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