Ortodoxia, heterodoxia e equilíbrio.

Ouvi outro dia, entre os corredores, a seguinte frase: inflação, e dai? O contexto é importante, diga-se. Tratava-se de mais um plano mirabolante na História Econômica Brasileira que viria a tentar ativar a economia. Mas inflação, e daí? Enfim, leitor, aqui parto dessa afirmação para justificar [de uma vez por todas] por que eu não sou heterodoxo, ao menos não no significado clássico do termo.

Pondero, antes de fazer divagações mais polêmicas, que creio em Deus pai, todo poderoso. E isso em economia significa dizer que tenho uma formação keynesiana bastante arraigada. O suficiente, ao menos, para não rejeitar o princípio da demanda efetiva, um desses raciocínios que merecem toda a sorte de louvor. Em que pesem as críticas de ortodoxos bem mais radicais do que eu, o equilíbrio entre oferta e demanda é algo raro, raríssimo, como poderia alegar Keynes se vivo fosse. Mas nem por isso, deveríamos deixar de pensar nesse mecanismo como forma de organizar o pensamento.

E isso mesmo que não houvesse tendência para o equilíbrio entre o que produtores ofertam e consumidores demandam. Há, mesmo em situações extremas como as vividas no presente. O equilíbrio é, porém, como dito, apenas uma maneira de organizar o pensamento. Ele não deve ser levado tão a sério nem pela crítica especializada, nem por outros economistas ortodoxos. Em tempos anormais, a tendência é para um equilíbrio do tipo subótimo, em que os fatores de produção estão sublocados. Equilíbrio na visão heterodoxa é quase sempre de pleno emprego de fatores. Não é. Equilíbrio é de outra forma uma tentativa de ajustamento entre oferta e demanda de bens e serviços.

Nesse contexto, mesmo que nunca alcançado, a busca por tal ajuste é sempre verificável na economia real. Em termos keynesianos, o produtor está sempre em busca de equilibrar receitas esperadas com desejadas. E aqui peço desculpas pela falta de clareza. Por esperada fique o leitor sabendo que é aquilo que o produtor espera vender – o que alguns livros chamam de gasto planejado. Já por desejada, seria aquela quantidade que maximiza seu lucro, seja lá em qual estrutura de mercado o mesmo esteja – e aqui cabem vários tipos de estratégias mercantis, que não apenas igualar o preço com o custo marginal, de onde vêm as críticas mais severas!

Quase nunca, porém, a receita que ele espera se iguala a que ele deseja. Se traçássemos uma reta do tipo y=x, onde as abscissas representam o nível de renda (a oferta) e as ordenadas representam o gasto (a demanda), aquele ponto único em que a receita esperada se iguala a receita desejada, que por sua vez cruza com a reta y=x é o que podemos chamar de ponto de equilíbrio. Ou em termos mais literários, um Nirvana cósmico sem precedentes.

Tal raciocínio é o que os manuais de macroeconomia chamam grosseiramente de cruz keynesiana. Salvo o desejo de simplificar as coisas, seria muito mais válido elucidar o princípio da demanda efetiva, antes que se prendam as mentes dos jovens economistas em meia dúzia de gráficos mau e porcamente produzidos. Destarte minha falta de consideração por esses reducionismos, o que salta aos olhos [ou deveria saltar] é que o equilíbrio em uma economia de mercado, como dito por Keynes, só é possível quando os consumidores efetivam seu poder de compra. De outra forma, há formação de estoques e um equilíbrio subótimo – termo utilizado pelo próprio Keynes, não me culpem, portanto. E tal ponto subótimo se dá mesmo em condições de flexibilidade total de preços, algo que a ortodoxia contemporânea não vê com muitos bons olhos, diga-se.

Nesse aspecto, ressalto, ser ou não ser keynesiano deve perpassar o uso desse princípio, o da demanda efetiva, antes de qualquer coisa. E para entende-lo de forma plena é preciso entrar pelo ramo das expectativas e toda a sorte de caos que provoca a incerteza em relação ao futuro. O projeto de pesquisa iniciado por Keynes vai nessa direção. Eu, porém, mesmo tendo bases keynesianas muito mais fortes do que qualquer outra escola de pensamento, tendo a ir por outro caminho. E isso justifico logo abaixo.

De certo que o gasto exerce poder sobre a oferta e que o equilíbrio entre um e outro é questão de mero acaso. Mas isso não tem como imposição uma espécie de economia do lado da demanda. O desenvolvimento econômico, em sua forma mais ampla de pensar, deve estar ligada a outras coisas, tais como acumulação de capital [físico e humano], tecnologia, instituições, infra-estrutura, crédito para inovação etc. Defendo arduamente que a política econômica seja anticíclica nos momentos em que a incerteza é esmerada. Mas tal comportamento não deve ser a norma: ela deve sim ser a exceção.

Ao fim e ao cabo, os instrumentos fiscais e/ou monetários não causam outra coisa que não distorções nos preços relativos. Eles devem sim ser usados em tempos de elevada aversão a risco e dificuldades no lado privado. Novamente em termos keynesianos, quando a receita desejada via processo de maximização de lucro [ou alguma estratégia de mark-up] é nitidamente superior àquela que de fato se espera receber vis-à-vis a realidade do mercado. Ou em outros termos, quando o gasto planejado está acima do gasto efetivo. Apenas em momentos onde as empresas enfrentam dificuldades extremas, refletidas em elevada acumulação de estoques e, portanto, impactando no uso de fatores de produção [trabalho, principalmente], os governos devem ser enérgicos, visando evitar o pior.

De outra forma, em outros tempos, a política econômica deve ser equilibrada, de modo a garantir uma trajetória razoavelmente estável tanto do produto quanto dos preços. É preciso guardar a potência da política fiscal para os tempos difíceis, para trocar em miúdos. E isso exige nada menos do que parcimônia nos bons tempos. Tudo o que a maior parte dos governos não fez nos últimos anos. E tal insight está mesmo lá em Keynes, perpassando pela extremamente criticada equivalência Ricardiana de Robert Barro. Ser ortodoxo é, portanto, uma espécie de culto ao pragmatismo.

Um economista ortodoxo jamais diria algo do tipo “inflação, e daí” tendo vivido em uma das maiores hiperinflações dos tempos modernos. Afinal de contas, só um tolo não enxerga os malefícios de uma inflação em contínuo processo de aumento. E aqui guardo a crítica para os que conhecem o aperto de mão secreto: inflação não deve ser um fim em si mesmo. De certo que há um trade-off nada estável entre crescimento e aumento generalizado de preços no curto prazo. Mas isso não significa que os policymakers tenham inflation-bias a todo o tempo. No Brasil pré-crise o que se viu foi muito mais um Banco Central em busca de credibilidade do que propriamente querendo trair o público em busca de mais uma dose de crescimento irresponsável.

Se o trade-off se esvai no longo prazo, gerando flexibilidade total de preços, informação completa e perfeita eu honestamente não saberia dizer. O que sei, porém, é que tentar anabolizar o crescimento econômico via mau uso de políticas fiscais e monetárias expansionistas não vai causar outra coisa que não seja inflação. E isso o Brasil viveu muito recentemente em quase todos os processos de redução da taxa Selic. Há uma rigidez no lado da oferta que a impede de acompanhar os incentivos que são dados à demanda. Não por outro motivo, as importações agradecem, amém!

Não há no horizonte, porém, uma inflexão para posturas irresponsáveis. O que se vê é o uso de política anticíclicas, corretas e necessárias. O que se critica, então, oras? São os problemas de comunicação. A autoridade monetária vê monstros no lugar de moinhos. Acerta no gato, quando mira no padre. De certo que a economia brasileira está em franco processo de esquizofrenia cruzada. Se de um lado o consumo promete continuar segurando a vela da esperança, do outro a oferta [notadamente a Indústria] já sacode o pires em busca de mais medidas protecionistas. Isso, leitor, é que um ortodoxo não pode aceitar de forma alguma.

Ser ortodoxo, por fim, não impede que creiamos em Deus pai todo poderoso. De certo que o mercado é falho [assim como o governo!], mas em tempos normais a política econômica deve desempenhar outro papel que não tentar gerar um equilíbrio raro entre desejos e esperanças. Esse deve ser deixado por conta do mecanismo de preço e sua capacidade ímpar em alocar eficientemente recursos escassos. E isso mesmo com toda a sorte de dificuldades, tais como informação imperfeita, rigidez de preços e salários, custos de repasse etc. Em assim sendo, os economistas ortodoxos esperam [do sentido têm fé] que não haverá nenhuma debandada para posturas a la década de 80 no Brasil, quando reinavam absolutos os economistas do tipo Inflação, e daí?

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