A miopia dos economistas ligados ao governo

DesvioO ex-ministro Delfim Neto, agente representativo dos economistas ligados ao governo, parece padecer de certa miopia analítica. Ele olha para a Europa e para os EUA e analisa o Brasil. Se é verdade que a política monetária baseada na calibragem da taxa de juros está em desuso naqueles lados, não se pode dizer o mesmo para o nosso país. Isto porque, a manutenção da Selic abaixo daquela que seria considerada neutra para a economia tem causado desvio das expectativas em relação à meta de inflação, o que por consequência tem arranhado a credibilidade da autoridade monetária. Isso produz duas coisas: baixo crescimento e inflação em contínuo aumento.

Delfim, como todos os demais economistas ligados ao governo, insiste em atribuir todo o atual processo inflacionário a "impulsos redistributivos" derivados do aumento do crédito e da massa salarial - que provocaram uma pressão sobre o setor de serviços - e choques pontuais de oferta, como o aumento dos preços de commodities. É difícil, senão impossível, para esses economistas, admitir que o canal das expectativas seja relevante no processo de transmissão dos efeitos de política monetária - e de forma mais abrangente da política econômica.  E, assim sendo, ignoram o fato de que uma política econômica pouco transparente, com falhas grotescas de comunicação por parte da autoridade monetária e do ministério da fazenda, cause problemas tanto para a inflação quanto para o próprio crescimento da economia.

No campo da inflação, como já explorei várias vezes em outros artigos e posts nesse mesmo espaço, sendo as expectativas dos agentes um canal relevante de transmissão da política monetária, desvios entre o que estes esperam e a meta de inflação são automaticamente repassadas para os preços futuros - a defasagem desse processo é importante, diga-se de passagem. Como mostra o gráfico acima, esse desvio só tem aumentado no período recente, o que está correlacionado com a piora dos índices de preços. Isso, claro, somado ao problema da inflação de serviços e dos choques de oferta, explicam a dinâmica atual da inflação em ascenção.

Já no campo do crescimento, os economistas ligados ao governo são ainda mais céticos sobre os efeitos de uma política econômica previsível. Para eles, intervenções são quase sempre benéficas, porque estão em um modelo onde a tal "incerteza genuína" é o maior dos males. Nesse caso, qualquer tipo de "incentivo" por parte do governo é sempre bem-vindo, porque busca resgatar o "espírito animal" dos agentes. É uma interpretação tipicamente pós-keynesiana que ignorou os avanços da teoria de política monetária dos últimos cinquenta anos - e, novamente, de forma mais abrangente da política econômica.

Delfim, por exemplo, em sua coluna de hoje (19/03) cita Brainard, que em artigo de 1967 publicado na AER, alertou sobre o que classificou como incerteza multiplicativa: ou seja, a existência de uma relação não linear entre o instrumento de política e a meta. Mas isso, o próprio Friedman, em seu artigo seminal de 68 também já sabia: e justamente por isso aconselhou os policymakers a não praticarem políticas monetárias excessivamente expansionistas. Lucas, outro economista amaldiçoado pelos economistas ligados a esse governo, foi outro que na década de 70 demonstrou que uma política econômica discricionária - sem regras - dificulta a "extração do sinal" dos agentes. Muitos outros modelos ainda na década de 70 e também 80 consolidariam o que ficou conhecido como "debate regra vs. discrição", dando ampla vitória para políticas econômicas guiadas por regras.

Em 1993, Taylor publicaria um pequeno artigo sobre como a autoridade monetária deveria calibrar a taxa de juros. Desse trabalho sairia a famosa "regra de taylor", tomando a taxa de juros como função do hiato do produto e do desvio da inflação. Ou seja, a autoridade monetária reagiria com aumento de taxa de juros quando o desvio da inflação efetiva em relação à meta ou quando o hiato do produto fossem positivos. Reduziria, caso contrário.

Já Svensson, em artigos seminais ao longo das décadas de 90 e 2000, promoveria o modelo de Inflation Targeting, atualizando a regra de taylor para o simples fato de que o Banco Central não afeta diretamente a inflação efetiva, mas as expectativas dos agentes sobre os preços futuros. Nesse caso, tais expectativas funcionariam como "meta intermediária" para a meta de inflação. Se aquelas convergissem, a inflação efetiva seria posta no centro da meta. Essa é, em resumo, a evolução da teoria de política monetária dos últimos 50 anos. Será que tal "ciência monetária" caducou, como quer Delfim?

É muito provável que a função de reação do Banco Central brasileiro tenha mudado, como mostrei aqui, mas isso não implica que toda a teoria demonstrada acima ficou invalidada. O fato de a Europa e os EUA estarem utilizando uma política monetária muito mais "quantitativista" do que propriamente seguindo uma regra do tipo taylor decorre do fato simples de que mudanças na taxa básica de juros já não transmitem mais informação para os agentes econômicos: é preciso, por exemplo, anunciar que ela ficará baixa por muito tempo, para que os agentes "se animem". Uma questão muito mais de comunicação do que propriamente de calibragem da taxa de juros. Além disso, claro, processos de afrouxamento monetário (quantitative easing) servem para reduzir taxas de juros de mais longo prazo, tentando gerar algum impulso sobre os diversos mercados, com objetivo explícito de reduzir a taxa de desemprego nessas regiões.

Se isso é verdade para aquelas regiões, está muito claro que não é verdade para o Brasil. Nós não temos os problemas de insolvência e iliquidez que possuem os sistemas financeiros daquelas regiões. Por isso, não precisamos de processos "quantitativistas" para tentar gerar impulso sobre a economia. Por aqui, a taxa básica de juros abaixo da "divina taxa neutra" é sim um importante fator de disseminação inflacionária, porque os canais de transmissão da política monetária - notadamente o canal de expectativas - continuam funcionando. E aqui, apenas para ressaltar, antes que haja má interpretação, não é que existam duas teorias. A teoria econômica é uma só. O que existem são conjunturas diferentes. No Brasil é uma, na Europa e nos EUA é outra.

Nesse lado dos trópicos, a falta de transparência da autoridade monetária e do ministério da fazenda em suas comunicações, ratifico, tem gerado perdas de credibilidade que recaem sobre inflação mais elevada e sobre menor crescimento. As expectativas dos agentes estão deterioradas, dada a incerteza provocada por uma política econômica sem previsibilidade, que a cada semana anuncia uma nova surpresa. Isso, claro, tem como efeitos menor investimento e mais inflação. Só não vê quem é míope...

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