Crescimento cosmético e preocupações com o aumento do crédito

A relação Crédito/PIB saiu de 24% em 2003 para quase 50% neste ano. Mas, don´t worry, leitor. O Brasil não vive bolhas em nenhum mercado de ativos. O Fundo Monetário está exagerando em seus documentos oficiais. Não fez o dever de casa para os países centrais e agora quer descontar nos emergentes. Simples como dois e dois são quatro. Certo?

Devagar com o andor, pois a sopa é quente e não queremos queimar a língua. Primeiro: não há mesmo bolhas no mercado imobiliário. Como bem explica o economista Robert Shiller: “bolhas especulativas são situações em que preços temporariamente altos são sustentados em grande parte pelo entusiasmo dos investidores e não por uma estimativa consistente do valor real”. Em outras palavras, o preço não serve mais como um índice de escassez, equilibrando oferta e demanda. Não emite mais informação relevante sobre o mercado que pretende regular.

Daí que sim, no Brasil, ao menos por enquanto, os preços dos imóveis sinalizam escassez. Há uma demanda historicamente reprimida e, ainda que a oferta tenha crescido nos últimos anos, há um descolamento no mercado, o que o organismo econômico trata de resolver com aumento persistente e generalizado de preços. Some-se a isso o fato do rendimento médio do trabalho ter crescido mais de 19% desde 2003, o governo ter lançado um programa de subsídios para a compra da casa própria e pronto: temos um boom imobiliário no país.

Em segundo lugar, o crédito aumentou mesmo a despeito de ainda termos taxas de juros extremamente elevadas. Mesmo financiamentos com baixo risco de inadimplência, como consignados, compra de imóveis ou carros têm juros anuais variando de 8% a 30%. Isso é muito, dado que existe garantia fiduciária e o risco de crédito para consignados ser (muito) baixo. Em outros termos, o próprio patamar de juros – aquilo que se paga além do montante recebido – sugere que a expansão do crédito tem um teto de expansão.

Então, leitor, o FMI está enganado? Sobre esse aspecto específico sim. Mas não é isso que preocupa. Na teoria macroeconômica, o investimento é financiado pelo crédito bancário e não pela existência de poupança prévia. Essa é, por suposto, uma variável determinada ex-post, pelo aumento de renda per-capita. Certo?

Se assim for, então, “Houston, we have a problem!”. O crédito aumentou, mas foi em grande parte direcionado para o consumo das famílias. A demanda se elevou e despertou o interesse de empresários, que também elevaram o investimento. Mas apenas timidamente. A taxa de investimento em relação ao PIB passou de 16,3% em 2003 para 19,4% em 2010. O resultado: a poupança permaneceu praticamente em ponto morto.

Crescemos a uma média de 4% nos últimos oito anos, resultado melhor do que os 2,3% dos oito anos anteriores. Mais isso é apenas cosmético. Como a produção doméstica não acompanhou o crescimento da absorção interna, as importações cresceram em média 10% no mesmo período e o déficit em Conta Corrente encerrou o último ano em 2,3% do PIB. Além disso, houve um claro descolamento entre produção industrial e vendas no comércio. Em se tratando de balanço de pagamentos, nosso déficit foi financiado inteiramente por crescentes impulsos de capitais externos. E qualquer economista sabe que não existe almoço grátis: as remessas de lucros, juros e dividendos (que fazem parte da Conta Corrente) só fizeram aumentar nos últimos anos.

Sobre este último ponto, especificamente, cabe lembrar que financiar o déficit em Conta Corrente com Investimento Estrangeiro Direto (IED) não é tão produtivo, como se imagina. Essa conta contém um componente chamado “empréstimo inter-companhias”, que mascara o fato de as próprias empresas fazerem operações financeiras. Em outros termos, mesmo aquele capital externo que é considerado produtivo têm também um aspecto de carry trade.

O leitor deve achar que eu estou sendo dramático demais, afinal o desemprego bateu sua mínima histórica em dezembro do última ano: 5,3% de desemprego aberto. Alguns falam em “desemprego natural”. Ou seja, cá entre nós, houve quem dissesse nos últimos meses que chegamos naquele nível em que só está desempregado quem não tem o mínimo de qualificação. Será?

Deixemos a provocação de lado e voltemos ao tema do artigo. Afinal, você a essa altura pode achar que a produção industrial está mesmo perdendo a guerra para os importados (leia-se: China). E que programas como o Brasil Maior, recém-lançado, talvez sejam mesmo necessários. Mas isso, novamente, é cosmético. Políticas industriais verticais, como bem sabem os economistas da UFRJ, só funcionam quando são acompanhadas de medidas horizontais, que beneficiam todos os setores e permitem uma melhor absorção de inovação (leia-se: investir em educação).

Nesse aspecto, o que faz o BNDES e o próprio CADE, com as bênçãos do Executivo, incentivando fusões e aquisições de gigantes, com vistas à internacionalização dessas empresas é conversa para boi dormir. Talvez funcionasse se fizessem igual ao Japão e à Coréia do Sul: investindo em educação e gerando compromissos de exportabilidade dos produtos produzidos por essas empresas. Incentivar a fusão da Brasil Telecom com a Telemar, por exemplo, não tem nada a ver com redução de nossa vulnerabilidade externa: é puro lobby.

Voltando à preocupação mais imediata do artigo, mesmo que haja divisões teóricas importantes em relação à poupança e ao investimento, o fato concreto é que um país que queira crescer precisa de investimento. E deixando de lado o fato de quem vem primeiro, por que não houve um aumento de poupança nos últimos anos? Reformulando, por que a poupança sempre foi baixa no Brasil?

Países do leste asiático tinham taxas de poupança e de investimento muito menores do que nós nas décadas de 60 e 70. Por consequência, a renda per-capita da Coréia do Sul era apenas metade da brasileira na década de 80. Hoje ela é o dobro e tanto a poupança quanto o investimento são maiores em relação ao PIB.

Quando o crédito aumenta – como vem aumentando no Brasil – é preciso ter muito cuidado com o seu direcionamento. Se ele não gera aumento do estoque de riqueza, talvez haja problemas institucionais a serem resolvidos. Quando bancos preferem financiar consumo ao invés de financiar empresas é preciso dar conta dos gargalos institucionais existentes. A resposta simples, e que vem sendo usada corriqueiramente, é culpar os produtos chineses. O caminho difícil, porém, é reorientar o crédito público e privado. Construir políticas industriais horizontais ao invés de eleger vencedores em setores com maior poder de lobby. Difícil é investir em inovação, acabar com faculdades federais que não produziram nada de relevante nos últimos cinquenta anos. Complexo é construir um ambiente de negócios menos burocrático, ter uma carga tributária progressiva e de fácil e transparente recolhimento, ter um código de processo civil mais ágil, o que reduziria sobremaneira o custo de empreender no Brasil. Isso sim nos tornaria mais competitivos em relação à China, não medidas paliativas de resultados extremamente duvidosos.

Sustentar um crescimento acima de 5% ao ano não tem a ver com crédito para consumo, somente. O ciclo só continua se as empresas conseguem financiar sua expansão e encontram fatores de produção – capital físico, tecnologia e mão de obra qualificada – a disposição. A demanda, é claro, importa no início. Mas quem sustenta o crescimento é a oferta. Descompassos persistentes entre um e outro tem duas implicações imediatas: aumento do déficit em Conta Corrente e Inflação.

Nesse contexto, não adianta culpar o câmbio. Ele é uma variável de ajuste. Se a renda doméstica cresce, as importações aumentam e uma parte das exportações é reorientada para o mercado interno. Se os preços dos produtos tradables aumentam, mais dólares entram. E se há oportunidades de investimento e diferencial de juros, capitais externos aterrissam. Mais dólares, câmbio apreciado. Fácil é culpar os gananciosos especuladores estrangeiros. Difícil é entender porque a poupança doméstica não reage, diante do aumento do emprego e da renda.

O modelo asiático, de baixo consumo, alto volume de exportações e grande acúmulo de poupança nunca foi possível no Brasil. Pode-se culpar a cultura. Mas isso é muito pobre para quem pretende ter uma análise crítica dos fatos. Na China, por exemplo, não existe previdência pública e o ensino superior estatal é pago. Só esses dois fatores isoladamente já geram incentivo à poupança. E no Brasil?

Para resumir, leitor: o ciclo de crescimento atual foi liderado pelo aumento de crédito, que impulsionando o consumo das famílias, fez a demanda crescer. Some-se a isso um governo disposto a impulsionar gastos e uma reação dos investimentos, temos um quadro de comovente reação da absorção doméstica. Mas não o suficiente para garantir taxas de crescimento acima de 5%, sem pressionar a inflação e/ou gerar superávit em Conta Corrente. Ao contrário, convivemos com os resíduos do mau crescimento durante todo o período recente: pressões inflacionárias constantes e aumento do déficit em Conta Corrente.

Olhando a diante, não se tem bons ventos. O que se vê é a continuação desse ciclo histórico de crescimento-com-endividamento, sem reformas que incentivem a formação de poupança por parte das famílias e, vez ou outra, com crises no balanço de pagamentos. No curto prazo, porém, com os eventos da década (Copa do Mundo e Olimpíadas), a descoberta do pré-sal e o recrudescimento das economias centrais é possível que capitais externos estejam dispostos em nos financiar e cresçamos meio que por “gravidade”. O consumo das famílias continua aumentando, assim como o investimento aumenta marginalmente. O governo continua em sua cruzada contra as importações chinesas, reservando o “mercado interno para as empresas brasileiras” e quem sabe essas retribuem apresentando aumentos na produção industrial. Mas tudo isso, leitor, é apenas cosmético. Como bem sabem os economistas, não existe essa de almoço grátis e assim sendo, certo ou tarde, a conta chega, se nada de concreto e estrutural for feito.

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