A conjuntura econômica mundial é complexa, cheia de detalhes obscuros e soluções distantes. Para analisá-la, portanto, é necessário saber retalhar em atos a sequência de eventos desde a quebra do Lehman Brothers, em setembro de 2008. No primeiro estariam as causas últimas da crise atual. No segundo as respostas dos diferentes governos ao crash bancário. No terceiro uma sucessão de apostas sobre o que está para acontecer daqui para frente. No presente artigo busco clarear algumas ideias, tendo como objetivo identificar as respostas mais adequadas em termos de política econômica para o atual recrudescimento do cenário externo.
Em primeiro lugar, saiba o leitor que vivemos em um sistema financeiro internacional baseado no padrão dólar, com bancos e demais instituições totalmente integrados. O que ocorre, portanto, na Grécia interfere diretamente no fluxo de capitais externos, afetando tanto o leste asiático quanto a América Latina. Desse modo, o surgimento de uma bolha no mercado imobiliário norte-americano (leia-se: aumento de preços sem nenhum fundamento real) e o seu posterior estouro causou uma interrupção de fluxos de capitais e tornou várias instituições financeiras ilíquidas e/ou insolventes. Abrem-se as cortinas para o primeiro ato da crise.
Em um sentido minskiano, quando o ciclo de crescimento se torna mais profundo, bancos e demais componentes do sistema financeiro tendem a relaxar seus modelos de risco. Economia em crescimento significa mais emprego e renda. Isso, em uma economia bancária, significa que o crédito tende a se expandir. Daí que, em um ambiente onde há assimetria de informações, bancos emprestam para toda a sorte de tomadores. Em todas as modalidades de financiamento, hipotecas inclusive.
Some-se a isso um sistema financeiro tomado por engenheiros, físicos e matemáticos, com um amplo leque de produtos financeiros. Hipotecas de tomadores de empréstimo não tão confiáveis juntam-se a títulos públicos, bounds de empresas bem classificadas entre outros. Surge um produto único – um derivativo – baseado em dívidas, que se alastrou pelo sistema financeiro. Tudo perfeito enquanto a economia está crescendo. Tudo imperfeito quando emprego e renda começam a declinar. Ou quando Ben Bernanke resolve que é hora de conter os excessos. Ou mesmo quando em muitos contratos de hipotecas assumem-se taxas de juros reajustáveis – o serviço da dívida aumenta ao longo do tempo. Ou quando é tudo isso ao mesmo tempo. Fim do primeiro ato: quebra do Lehman Brothers.
Os títulos lastreados por dívidas foram apelidados por alguns economistas como “produtos de destruição em massa”, dado a incredulidade em sua constituição. A pergunta que ficou na ressaca: como os governos permitiram isso? Como o sistema financeiro pode se alavancar tanto e manter em seu ativo produtos com tal risco de crédito? A resposta para o primeiro ato da crise se daria, naturalmente, em duas dimensões. Na primeira, caberia aos tesouros nacionais e aos bancos centrais evitar o risco sistêmico, seja absorvendo títulos podres, seja servindo como emprestador de última instância, provendo o sistema financeiro de ampla liquidez; além de, claro, acionar a política fiscal, em um sentido anticíclico. Na segundo, parlamentos nacionais deveriam discutir uma nova regulamentação dos excessos financeiros. Esse é o início do segundo ato, leitor.
Ignorando riscos morais, tesouros nacionais e bancos centrais utilizaram todos os instrumentos à disposição para evitar o pior. O parâmetro era a crise de 29, quando governos embebidos por uma “teoria liberal tola”, não quiseram evitar o crash e condenaram a economia mundial a anos de depressão. Em assim sendo, bancos centrais seguram as pontas, injetando rios de dinheiro nas veias do sistema financeiro. Tesouros nacionais aumentam seus déficits, e, portanto, seus estoques de dívidas.
Há uma socialização das perdas. A demanda reage, diante das políticas anticíclicas. A produção se recupera, ocupando a ociosidade do período crítico. O PIB mundial mostra valores positivos em 2010. Os bancos reduzem a alavancagem. Todos parecem respirar...
Quando tudo parece encaminhado, eis que vem o ápice do segundo ato. Os Estados Unidos entram em um imbróglio político para aumentar o limite de endividamento. Dados da economia real mostram desaceleração. O que antes poderia ser interpretado como corriqueiro, agora é questão de vida ou morte para os republicanos. Não os culpemos, leitor. Políticos têm funções objetivo diferentes. Querem votos e não racionalidade econômica.
A Europa, em outro plano, se dá conta que a Grécia não entregaria o prometido. E junto com ela, Espanha, Portugal, Irlanda e Itália também se encontram altamente endividados. Agora são os governos – os salvadores do primeiro ato – é que se encontram em dificuldades para rolar suas dívidas. Nova crise de confiança. Investidores nervosos, focados em operações de curto prazo. Em tempos de aversão a risco, day trade. É melhor não manter relacionamentos mais sérios. Todos, afinal, esperam o default grego. Sabem que não há ajustes críveis. O calote é iminente.
Para completar, o gigante chinês parece caminhar de lado. Florescem estimativas que preveem uma redução do crescimento naquele país. Tensões sociais crescentes estariam gerando aumento de custos e demanda por melhoria na renda per capita. Nesse aspecto, o partido comunista teria de compatibilizar crescimento com aumento do consumo das famílias. Isso implica em redução de investimentos, menos exportações e mais importações.
Respire, leitor. Fim do segundo ato. Tempo para ir ao toalete, tomar um gole de água e refletir um pouco. E agora, perguntaria Drummond. José, e agora, que a luz se apagou? O que esperar? Terceiro ato: o que acontecerá?
A resposta passa necessariamente pelo ciclo de crédito. Em uma economia monetária, onde bancos servem como intermediadores entre devedores e poupadores, é de se esperar que os ciclos econômicos sejam amplificados. Variações cíclicas são normais em uma economia de mercado, sujeita a milhões de decisões individuais de consumidores e empresários. Com o advento do crédito, há uma mudança de patamar. Crédito para consumidores comprarem, para empresas investirem e governos financiarem seus déficits. Quando a economia cresce, dívidas são pagas e tudo vai bem. Quando um surto de desconfiança surge no ar, o consumo diminui, a produção cai, emprego e renda idem. A inadimplência cresce e instituições financeiras sofrem com problemas de liquidez e mesmo solvência. Isso se aprofunda ainda mais se a relação encaixes-empréstimos se torna excessivamente baixa.
Não se iluda, entretanto, leitor, com as respostas fáceis. O boom de crédito é sim consequência da desregulamentação da década de 80. Mas isso foi uma resposta à estagflação da década anterior. Logo, sem ela, é pouco provável que os EUA tivessem tido um período tão bom como foram os anos 90. Sem ela, a Europa não teria conseguido fazer sua integração monetária e o Japão não teria feito seu processo de catching up. Daí que demonizar a desregulamentação e propor como salvação da lavoura uma nova rodada de intervenção estatal não é o caminho mais coerente.
Pensar respostas à atual crise passa necessariamente em conduzir da melhor maneira possível a política econômica. Foram os excessos em termos de política monetária, via taxas de juros muito baixas, que produziram em última instância, as bolhas em diversos mercados de ativos (imobiliário, inclusive). A correta condução dos mecanismos monetários é a melhor maneira de evitar abusos e excessos por parte das instituições financeiras. Isto porque, ninguém em sã consciência preconiza uma economia de mercado onde não exista um complexo sistema financeiro. Além disso, deve-se ter em mente que o lado fiscal deve obedecer aquilo que foi preconizado por Keynes: deve ser superavitário nos momentos de crescimento e deficitário nas recessões. Insistir em déficits ad infinitum só dificultara as respostas de política econômica nos momentos de crise econômica.
Nesse contexto, o mundo deverá caminhar para um ponto de racionalidade ou ver definhar ainda mais a confiança dos agentes econômicos. A política econômica terá de voltar a ser um instrumento eficiente de correção dos ciclos. E isso só voltará a acontecer se ajustes fiscais forem feitos. Não há alternativa: ou os países europeus endividados incorrem em ajustes em seus orçamentos, ou não terão credibilidade para rolar suas dívidas. Isso seria cobrado em termos de spreads altos ou simplesmente em inexistência de demanda por seus títulos soberanos.
Já em relação aos EUA, a situação é um pouco mais complicada. Ajustes ficais são necessários para gerar credibilidade perante os agentes econômicos. Altos déficits e elevado endividamento, somados a curto prazo de maturação de títulos sugerem alto risco de inadimplência (default). Ocorre, porém, que os EUA detém uma moeda de reserva, sendo o porto seguro onde agentes de todo o mundo exercem sua “preferência por liquidez”. Em assim sendo, e enquanto não houver um substituto a altura, a política econômica norte-americano pode continuar disfuncional. Daí se origina uma pretensa soberba dos Republicanos (a oposição) em relação aos termos de fuga da crise. Em assim sendo, calmaria nos mercados só mesmo quando o resultado das eleições de 2012 for retirado das urnas. Mas não se engane: a resposta virá com mudanças profundas na política econômica, dado que essa desfuncionalidade não pode se perpetuar no tempo. E os próprios republicanos sabem disso.
Sendo assim, leitor, espera-se mais volatilidade e baixo crescimento para os próximos anos. As soluções convergem para mudança na condução da política econômica. Seja em termos mais abstratos, como maior supervisão bancária, seja em termos mais pragmáticos como maior cuidado no mix de política. Os países endividados terão de reduzir gastos, implementando algo como o superávit primário brasileiro para orientar suas políticas fiscais. União fiscal na Europa está fora de cogitação, ao menos por enquanto. Em termos de política monetária, é preciso observar que juros baixos por muito tempo não necessariamente reanimam a economia (vide o Japão e o capítulo 17 da Teoria Geral). E solução mesmo, estrutural, é coisa que só ocorreria se o modelo econômico fosse outro. Como estamos falando de economias de mercado, o jeito é esperar agonizando.