Eu confesso que ainda me surpreendo como qualquer economista oriundo da Unicamp consegue ter ideias equivocadas sobre qualquer tema econômico. Foi o sentimento que tive ontem, uma vez mais, ao assistir ao programa da Miriam Leitão, na Globonews, sobre independência do Banco Central. Miriam convidou os professores Márcio Garcia, da PUC-Rio e Fernando Nogueira, da Unicamp. O primeiro se posicionou a favor da independência, enquanto o segundo é contra. Para Nogueira não vale nem mesmo a autonomia operacional, isto é, o Banco Central ter liberdade para usar os instrumentos de política monetária para atingir o objetivo, que é a meta de inflação. O professor não disse, mas na prática equivale a ser contra o regime de metas de inflação, o que é basicamente o cerne da política econômica hoje praticada por Brasília.
Não à toa, a atual política econômica, baseada na nova matriz econômica pode ser interpretada como de inspiração campineira. A visão macro dessa política, afinal, tem tudo a ver com o que o professor Nogueira e outros campineiros pensam sobre economia. A ideia básica aqui é que juros e câmbio, por exemplo, são variáveis exógenas e devem, portanto, ser calibradas de acordo com os objetivos de política econômica. Vale aqui o princípio da demanda efetiva, qual seja as economias estão sujeitas à insuficiência crônica de demanda, o que justifica a intervenção do Estado para atenuar incertezas, via multiplicador de gastos autônomos. O investimento privado virá a reboque do investimento público, bem como o consumo das famílias será incentivado via política creditícia, objetivando previsibilidade de receita para as empresas. Com essa certeza, as firmas investem, o que garante o aumento da oferta agregada nos períodos seguintes.
Tanto a inflação quanto o déficit em conta corrente, nesse contexto, são apenas resíduos temporários do processo dinâmico mais agudo que se desenvolve.
É mais ou menos sob essa narrativa que Nogueira culpa o próprio Banco Central pelos ciclos de stop and go que a economia brasileira teria vivenciado na última década. Para ele, a moeda não é neutra, logo faz sentido gerar incentivos de política econômica para aumentar o crescimento da economia brasileira.
Faltou combinar com os dados, não é mesmo? Os estímulos de política econômica foram feitos ao longo de 2009-2013, sem grande sucesso. O BNDES capturou mais de R$ 400 bilhões do Tesouro e distribuiu para algumas empresas eleitas. Curiosamente, entretanto, a taxa de investimento não reagiu. Ela era de 19,1% em 2008 e chegou a 2013 em 18,2%. O crescimento médio desse período foi de estrondosos 2,7%, contando com os excessos de 2010, quando a taxa de crescimento do PIB atingiu 7,5% - bem acima de qualquer medida de produto potencial que se possa ter.
A inflação média foi de 5,69%, contando com controle direto de preços sobre energia elétrica e combustíveis. Sem esses controles, estima-se que a inflação média teria sido de 1,5 p.p. a 2 p.p. maior. O uso de poupança externa (déficit em conta corrente) também se elevou: passou de 1,9% em 2008 para 4,08% em 2013. Infelizmente, entretanto, o maior uso de poupança do resto do mundo foi pouco usado para investimento, como mostrado acima, e mais para consumo. Este representava 58,9% do PIB em 2008 e passou a representar 62,6% em 2013.
Tudo isso sob influência do que o ministro Guido Mantega chamou de nova matriz econômica, isto é, a ideia de que juros e câmbio devem ser utilizados como instrumentos de política econômica. Em agosto de 2008 o câmbio médio era de 1,6 R$/US$, o que causava comoção entre a maior parte dos desenvolvimentistas brasileiros. Hoje o câmbio está em torno de 2,40 R$/US$ e só não desvaloriza mais porque o Banco Central tem intervido fortemente no mercado via oferta de swaps cambiais. Analogamente, os juros reais da economia brasileira (Selic deflacionada pela expectativa de inflação 12 meses à frente) foram reduzidos em 2012 para uma mínima de 1,7%. Juros menores e câmbio mais desvalorizado parecem não ter sido suficientes para nos levar ao paraíso de crescimento, não é mesmo?
O equívoco básico dessa estratégia de política econômica está em confundir variáveis exógenas com endógenas. As taxas de equilíbrio dos juros e do câmbio nada mais são do que consequências da interação macro de uma economia. Países com baixa poupança doméstica irão ter uma taxa de juros mais elevada, o que se refletirá em câmbio mais valorizado. Você pode escapar dessa combinação em períodos curtos da História, a depender do que acontecer com o cenário externo ou com as próprias decisões de política econômica. Mas para que o nível de equilíbrio dessas variáveis seja diferente, é preciso combinar com a poupança, não tem jeito.
O paradigma keynesiano nos diz que não devemos nos preocupar com a poupança, que ela é um resíduo ex-post do processo econômico. O motor do crescimento é o investimento e se esse aumentar, a poupança naturalmente se elevará nos períodos seguintes, pelo aumento da renda agregada.
Bom, você já viu como a taxa de investimento cresceu no período, não é mesmo? Os incentivos de política econômica só fizeram aumentar o deslocamento entre oferta e demanda, causando inflação e déficit em conta corrente, no lado macro e no lado micro, aumento de incerteza para as firmas (dada a falta de previsibilidade de política econômica), bem como aumento de endividamento das famílias. Com efeito, a poupança saiu de 18,8% em 2008 para 13,8% em 2013.
Por fim, eu gostaria de dizer que sou afeito ao debate, até mesmo por ter me formado em escolas heterodoxas (a despeito de não ser hoje um economista heterodoxo). Mas ideias equivocadas não deveriam ser revisitadas, dado que já se mostraram um retumbante fracasso lá, nas décadas de 60, 70 e 80. Como os economistas da Unicamp parecem não ter se atualizados, sugiro que paremos de dar atenção ao que eles dizem. O Brasil só tem a ganhar com isso...
Update: assinantes podem acessar o debate entre Garcia e Nogueira aqui.