A incômoda independência do banco central

Um vento gelado tomava conta do Arco do Teles. Apesar disso, todas as cadeiras estavam ocupadas entre as ruelas do espaço, no centro do Rio. Seria assim apenas o início do final de semana, um descanso merecido do trabalho e dos estudos. Seria, não fosse o banco central. A autoridade monetária chegou à mesa pelos lábios de Camila, minha amiga de longa data, que estava de volta à ex-capital, após algumas temporadas em Zurique. Não, Camila não é economista: é designer. De coisas melhores do que bancos centrais independentes: de móveis. Aquelas peças maravilhosas que todo mundo gostaria de ter na sala de estar ou na varanda, para recepcionar os amigos. Camila, entretanto, deixou o trabalho que me dá inveja de lado e lançou a pergunta no ar: o que vocês acham dessa estória de independência do banco central?

Há um prólogo, é claro. Entre um gole e outro de um belo exemplar da uva pinot noir, o papo era animado e todo ele direcionado para a campanha eleitoral. Havia o Marcos, "petista de longa data"; havia a Bia, "marinada pelas circunstâncias"; havia eu, "economista ortodoxo tucano neoliberal que não gosta de crianças"; e havia a Camila, sem partido ou rótulos que possam lhe desmerecer antes mesmo de balbuciar qualquer palavra.

O horário eleitoral entrou na pauta pela Bia, cansada da dicotomia entre PT e PSDB, notadamente a melhor ofensiva dos marinados. Dei de ombro nesse instante porque, simplesmente, estava cansado demais para discutir política àquela altura. E sem economia no meio, tudo fica muito insosso para despertar meu interesse para a política brasileira.

Marcos, então, contra-argumenta pelas vias sociais do governo petista. Lista avanços, ignora retrocessos como o IDEB recém divulgado, se atendo ao nunca antes nesse país. A cereja no bolo é sempre clara: o governo do PT foi muito melhor do que FHC. O roteiro da crítica petista é tão sempre igual que me parece sair de uma cartilha, utilizada por todos os governistas e seus simpatizantes. O governo FHC parece  um porto seguro para o PT, um paraíso sobre o qual tudo, simplesmente tudo, parece ser defensável.  Tudo tão cansativo que preferi olhar o tumulto da sexta-feira, me concentrar no samba de fundo que àquela altura era de uma cadência desconcertantemente graciosa. Até que Camila me olha com ares de reprovação: e você, Vítor, não vai defender o PSDB? 

O verbo defender não deveria ser conjugado nessas circunstâncias. Em uma sexta-feira, no Arco do Teles, por que cargas d´água eu, logo eu, deveria defender o governo FHC? Porque você é o único tucano entre nós, ora, questiona Camila. Tucano, eu? Ué, não é? Não, só apoio um possível governo Aécio. E isso não é ser tucano? Que eu saiba, não.

Camila manda eu parar de enrolar e defender logo o PSDB. Não o faço, porque o rumo da prosa iria por vias desgastantes. Eu mostraria os benefícios das reformas feitas nos anos 90. Argumentaria que elas não tinham nada de neoliberais. Ousaria em prever que fosse quem fosse o social democrata eleito, as reformas teriam sido realizadas, afinal, a economia brasileira tornou-se tão planificada ao longo do período 1930-1980, que mais parecia uma economia socialista. Para importar o pinot que estávamos tomando, por exemplo, seriam necessários alguns formulários e uma dose de dor de cabeça, antes que qualquer gota do vinho fosse apreciada pelas papilas degustativas!

A defesa, entretanto, seria ignorada por Marcos e por Bia porque, afinal, eles já têm seu voto definido e ignoram solenemente qualquer defesa do governo FHC. Se há algo indefensável para eles, esse algo é o governo FHC. Marcos, então, citaria o desemprego, as greves, a insatisfação popular da época. Falaria que o país quebrou três vezes, um slogan que parece estar na tal cartilha. E Bia provaria seu argumento sem argumentar, após a intervenção de Marcos, que por isso voto em Marina: não aguento mais essa dicotomia entre PT e PSDB. 

E ao pensar em tudo isso, dou um sorriso leve para Camila e peço para ela contar como foi a estadia na Suíça. Estórias dos Alpes são melhores narrativas para uma sexta-feira à noite. Ela não cede, mesmo que tenha muita coisa para dizer sobre seus longos sete anos por lá. Dividida entre o grupo no whatsapp e a conversa do Arco do Teles, propõe que discutamos a independência do banco central. Queria entender melhor o assunto, ao que parece uma desculpa para interceder na conversa do whatsapp: novos tempos em que podemos estar em lugares múltiplos...

Marcos é o primeiro a dar uma opinião. Seca, sem direito à réplica e curiosamente convergente a sua tese: sou contra porque é antidemocrática. Ora, diz ele, não elegemos o presidente do banco central, porque cargas d´água ele deveria ser independente para fazer o que quiser? 

A palavra antidemocrática ressoou pela mesa. Tempo de eu ir ao banheiro; afinal, depois dessa, o melhor a fazer é pedir um tempo ao juiz, para recobrar os sentidos. Opiniões como essa me deixam em uma encruzilhada. Fico entre perder o amigo ou perder a piada. Ao voltar, entretanto, Bia me salva e diz: antidemocrática? Ué, o poder judiciário, pela sua análise, também o é, não? Não, diz Marcos, o judiciário é outra coisa, tem a ver com independência do executivo, com a técnica do direito, que nem todos são obrigados a conhecer. Camila, então, questiona: mas se é assim, por que o banco central não deveria ser independente do Palácio do Planalto? As pessoas sabem mais economia do que direito?

 Marcos vai para a moral: o conceito de independência é imoral, porque as pessoas elegem um governante para que ele dê cabo de suas preferências. E questiona: por que as pessoas não deveriam escolher juros mais baixos? Por que a decisão sobre juros deve ficar sob a responsabilidade de um banqueiro central independente? Ora, questiona novamente Camila, da mesma forma que você usa a "técnica do direito" deve existir uma "técnica da economia" para justificar isso daí que você está falando, não é Vítor?

Pois é, não escapei. E como explicar um tema tão complexo como esse, autonomia/independência do banco central, saboreando um bom vinho em pleno Arco do Teles?

Digo complexo porque nem mesmo todos os economistas conhecem o tema. Apenas os economistas especializados em teoria monetária têm alguma opinião séria, baseada em evidências concretas, para defender uma ou outra posição - independência ou não do banco central. Significa dizer que mesmo que você ouça algum economista sobre o tema, isso não significa que ele conheça, de fato, sobre o que está falando. Logo, se entre economistas o assunto não é lá muito conhecido, o que dizer entre pessoas que não têm a menor obrigação de estudar isso? Como tornar algo didático o suficiente para atingir pessoas que, em geral, não se interessariam por isso? Como não se deixar levar pela propaganda partidária e entender que o assunto é dos mais sérios em se tratando de política econômica?

- Camila, me responda uma coisa: você entregaria o controle do vírus Ebola a um economista? - pergunto, com segundas intenções.

- Claro que não! A um médico especializado no assunto, provavelmente. - ela responde em tom enfático.

- E o controle da inflação, você entregaria a quem? - continuo com segundas intenções.

- Controle da inflação? Mas não estávamos falando de independência do banco central? - questiona, um pouco confusa.

- E continuamos falando sobre isso, afinal ser contra a independência do banco central é ser contra o controle da inflação, o único imposto que pode ser criado sem maiores ruídos. - inicio o argumento.

Bia fica intrigada e me questiona com um "como assim". Marcos está distante a essa altura, provavelmente ouve o samba e presta atenção em duas gringas que arriscam alguns passos há três mesas de distância. Parece mesmo ser melhor sambar para espantar o frio do que tecer comentários sobre assunto dos mais complexos. Mas já que estamos aqui, explico a Bia e a Camila o porquê dos bancos centrais terem, necessariamente, de ser independentes dentro do regime de metas de inflação.

- Vocês concordam que deve existir uma meta de inflação? - questiono as duas.

- Sim - elas respondem em uníssono.

- Imagine, então, que eu lhe dou uma meta no seu trabalho, mas não lhe dou autonomia para persegui-la, ou seja, que você possa usar os recursos de que dispõe para alcançar essa meta, o que vai acontecer, provavelmente?

- Provavelmente não vou conseguir entregar essa meta! - dispara Bia.

- Ora, se ao banco central cabe perseguir uma meta de inflação, ele não deveria ter autonomia para isso? De usar os instrumentos de que dispõe para controlar a liquidez da economia? Equilibrar a quantidade de meios de pagamentos com as necessidades comerciais e financeiras da economia? Elevar o preço do dinheiro toda vez que ele estiver sendo utilizado em excesso, causando inflação? É apenas disso que a independência do banco central trata: de dar liberdade ao banco central para que ele cumpra a meta de inflação. Agora, isso não tem nada de antidemocrático, dado que quem define a meta de inflação é a sociedade, via políticos democraticamente eleitos. E também não é um conceito moral: ele é técnico. A independência apenas evita que o governo utilize de forma irresponsável os juros, causando inevitavelmente mais inflação para a economia. Exatamente o que acontece nesse momento. Em agosto de 2011, por exemplo, o governo interviu no banco central, fazendo-o reduzir os juros de forma artificial, para tentar reanimar a economia que se mostrava em queda desde o final de 2010. Em abril de 2013 não só foi necessário voltar a subir os juros, como a inflação vai fechar o quarto ano longe da meta. Sem independência, o banco central está sujeito aos desmandos do governo eleito. Não me parece ser um bom negócio, logo, repito, ser contra a independência do banco central é ser contra o controle da inflação, o único imposto que você pode criar sem maiores ruídos da sociedade. Quando se percebe o estrago que ele faz, em geral, já é tarde demais...

Bia e Camila se entreolharam em silêncio, concordando com as explicações, enquanto eu apreciava a intensidade do bom pinot. O restante da noite, leitor, foi dedicado às aventuras de Camila em Zurique, um assunto bem melhor para se discutir em uma sexta-feira à noite, não é mesmo? 🙂

 

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