Os livros e eu

Minha entrada no mundo dos livros não foi lá tão nobre assim. Já desde muito cedo esboçava ser extremamente competitivo. Mesmo na pré-escola (o tal "jardim de infância" lá no Rio), sempre gostava de ser mais "produtivo" do que os coleguinhas: estava sempre tentando desenhar mais do que eles. No pós-escola estava sempre tentando ser o melhor jogador de futebol da rua, o melhor jogador de videogame, o que primeiro completava o álbum de figurinhas do Brasileirão e por ai vai... Dai que, pergunta o leitor impaciente, o que diabos isso tem a ver com os livros?

A minha "compulsividade" foi logo repassada ao mundo dos livros quando na escola foi afixado um cartaz bem grande com os dizeres mágicos "Concurso para Leitor do Mês". Li, li e reli as palavras maiores e também as miúdas e lá fui pela primeira vez à biblioteca. O ambiente calmo, refrigerado e com sorridentes bibliotecárias me deu um conforto imediato: achava ali o meu lugar preferido para passar os recreios. E assim que tocava a sirene, lá estava eu me dirigindo ao santuário dos geeks - não que naquela época eu tivesse idéia do que isso significasse.

No primeiro mês não ganhei nada. Peguei alguns livros, passei os olhos e devolvi na data acertada. Um total de quatro livros em quatro semanas, sendo um por semana. Não li nenhum por completo. Afinal, a idéia não era essa. Queria mesmo era ser um leitor do mês, ora! No segundo mês resolvi "apertar o passo": peguei dois livros por vez, oito no total daquele período. Mas nada! O número um daquele mês leu absurdos 34 livros! Eu fiquei encucado, lógico: como assim esse cara leu tantos livros?

No decorrer dos meses seguintes mais decepção. E menos leitura. Era quase que mecânico: pegava os livros, enconstava-os em algum canto da casa e os devolvia na data de encerramento do empréstimo. Lia muito pouco. Duas ou três página de um, um capítulo de outro e pronto. Já estava desistindo do concurso, quando em um desses recreios despretensiosos estava em meu lugar preferido e assisti a uma cena que mudaria meu perfil de leitor. Uma das sorridentes bibliotecárias arrumava uma nova seção na biblioteca: a de gibis. Todos cheirando a novo, delicadamente retirados de grandes caixas de papelão. A maior parte com estórias da "Turma da Mônica" - o que a meu ver deveria ser "Turma do Cebolinha", porque ninguém compraria gibi se a Mônica fosse a personagem principal.

No dia seguinte lá estava eu pegando meus primeiros três gibis. Os devorei ainda na volta para casa. Ansiava por chegar logo a manhã seguinte e poder continuar lendo as estorinhas. E assim foi pelo restante do mês: enchi a carteirinha da biblioteca com 30 gibis! E ganhei uma menção honrosa no concurso de leitor do mês. No decorrer dos meses, mais e mais gibis, até que boom: em um único mês li cinquenta gibis e fui agraciado com o título de leitor do mês. Lá se iam quatro carteirinhas completamente abarrotadas e o sentimento de dever cumprido.

O gibi - ou comic book - é uma forma mágica para quem está iniciando na leitura: tem diálogos leves, palavras descomplicadas, são estórias curtas e, o mais importante, são divertidos. Foi minha porta de entrada no mundo dos livros. Li todos os 150 títulos que a biblioteca havia comprado, entre gibis da Turma do Cebolinha (sic), as aventuras do superman, batman dentre outros. E assim chegado ao último deles e conquistado o agraciado título visado, não parei mais: estava iniciado no mundo dos livros. A passagem dos gibis para os livros se deu de forma bem tranquila. Passei a Pedro Bandeira, com o seu divertidíssimo "os karas" e a sequência de bons livros da série, como A Droga do Amor e A Droga da Obediência. Muitos contos, como a coletânea De Amor e Amora, de José Elias. Livros da tradição infanto-juvenil, com autores que entendem a cabeça das crianças e adolescentes e que merecem todo o reconhecimento de nossa sociedade.

Além da minha "competitividade extrema" um outro aspecto igualmente importante me levou para o mundo dos livros: as aulas de literatura. A cada bimestre, tínhamos que ler um livro de estória, para-didático e fazer uma resenha sobre o mesmo. A professora seguia com as aulas em sala, diferenciando os estilos e escolas literárias. Nós, em casa, iamos fazendo a leitura e rascunhando o que entendíamos do texto. Dúvidas sempre surgiam, mas eram prontamente elucidadas pela professora em sala. Para nos guiar na empreitada, um questionário com uma série de perguntas sobre o texto.

Aulas de redação me completaram como leitor. Tão prazeroso quanto ler, imaginar lugares e estórias é poder fazer parte desse mundo. As aulas de redação que tive na quinta-série (um aninho apenas!) foram uma verdadeira amostra do que deve ser a escrita criativa. E foram elas que me possibilitaram "passar para o outro lado do balcão". Fico triste em ver que essa geração destesta ler e, portanto, não consegue escrever um parágrafo que seja!

Unindo os dois aspectos, lá estava eu na sétima série pegando os livros do meu hoje autor preferido Machado de Assis. O primeiro foi Dom Casmurro, o livro que, mesmo passado mais de um século, ainda não foi completamente digerido pela crítica - todos os anos saem teses e dissertações nas Escolas de Letras sobre o texto. Depois Quincas Borbas e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Uma breve pausa recheada de seus espetaculares contos e novamente mais romances. Dos 13 anos até hoje devo ter lido quase toda a obra de Machado, entre romances, crônicas e, claro, contos. As poesias fiquei devendo: quem sabe um dia!

Foi assim, graças a uma conjunção de boas aulas de literatura e redação e minha compulsividade por competir que virei um frequentador assíduo das bibliotecas e livrarias da vida. Hoje meu gosto é variável, para não dizer esquizofrênico: leio de Augusto Cury, com seu bom O código da inteligência até Leviatã, do meu outro autor favorito Hobbes. O fato concreto é que tenho uma relação com o livro. Compro ao menos um por semana. Sigo, com humildade o honesto conselho de G. Franco: "você só é um pouquinho a mais daquilo que lê".

E quão triste fico ao ver que a geração atual, a que veio depois da minha, não está nem ai para os livros. A geração teletube já nasceu no meio desse furacão chamado internet e não teve tempo de frequentar bibliotecas. Se quer resenhar algum livro, dá uma googleada e pronto: lá está um resumo prontinho para ser entregue à querida professora. E, para dar uma disfarçada, é sempre acompanhado de um presentinho: uma maça, um bombom, uma caneta mais arrumada... Aprendem, enfim, desde muito cedo o valor do suborno e da "malandragem". E a nossa pedagogia sacro-cristã - aquela que busca formar o tal "cidadão consciente" - assisti tipo assim bestializada a esse comportamento (a)ético.

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