Amores Urbanos: capítulo 5

Sempre achei curioso e ao mesmo tempo um tanto quanto assustador o fato de que o curso total ou parcial de nossas vidas depende de uns poucos eventos. Anos ficam à sombra de parcos minutos ou no máximo horas. Um ou outro acontecimento determina uma grande parte do tempo em que respiramos nesse mundo. A curiosidade me vem em imaginar como minha vida seria diferente se determinadas situações tivessem se materializado de maneira distinta. Se por acaso do destino uma escolha que fizesse fosse mudada, tudo o mais constante, como seria meu futuro? Tal comportamento sempre me traz a cabeça o velho Sampaio, professor de História dos meus primeiros anos de ginásio. O “se”, ele dizia, não entra no estudo histórico, porque ele simplesmente não aconteceu. Ficava enfurecido, o senhor de face arredondada, óculos fundo de garrafa e estatura desproporcional, toda vez que um aluno seu imaginava outra versão para os fatos. E se, cogitava alguém só para implicar com o velho, Napoleão não tivesse invadido a Rússia, hoje falaríamos todos francês? “Não faça isso seu peralta inconseqüente!”, o velho gritava lá da frente, dando murros vibrantes no quadro negro. E pagava sempre o mesmo sermão, reavivando nossas memórias para os fatos. A História trata apenas dos fatos, dizia ele. Nada mais do que os fatos. Mas mesmo com aqueles avisos constantes e os murros esbravejados, nunca perdi o hábito de cogitar outras versões para minha própria história.

Conjuntamente com tal hábito, mantive e, talvez mantenha até os dias de hoje, um terrível medo paralisante em reconhecer que os próximos anos da minha vida podem ser definidos no próximo badalar do relógio. A vida é milimetricamente desleixada, regida tão somente por uma sucessão de eventos caóticos, pouco ou nada previsíveis. Mesmo que faltosamente tentemos a todo o instante programar nossos próximos passos somos quase sempre obrigados a reconhecer nossa completa incompetência em fazê-lo. O mundo que conhecemos é a mais bela, destemida e raivosa demonstração do quão pequenos cada um de nós somos frente a ele.

De fato, em poucos meses, entre a primavera e o verão daquele ano, passei de uma criatura quieta, avessa às curtições da época e mesmo recluso, a um honorável alvo e apreciador de carinhos femininos. Quase tudo por conta de uma partida bem jogada de futebol. Três gols, um deles classificado como antológico, foram o suficiente para que Fernanda, a diabinha risonha que desafiava minha consciência, me atacasse naquele banheiro sujo com grande voracidade. E não fosse tal ataque, certamente premeditado, não teria notado a influência e o fascínio que uma simples partida de futebol pode provocar sobre as mulheres. E nessa cadeia de acontecimentos, Ana não teria vindo bater no meu portão naquela noite estrelada de verão. Por fim, eu não estaria em uma aflição maldita, dividido entre os carinhos reconfortantes de um anjo e os beijos torpes e calientes daquela diaba atrevida.

Tudo o que eu planejava antes de ser atacado com virulência naquela manhã ensandecida era apenas ser jogador de futebol. Nada mais me chamaria atenção antes daquela noite na pia. Era um garoto tímido, volto a repetir, e em certa medida estudioso e apaixonado única e exclusivamente pelo futebol. Adorava o contato com a bola e tudo o que ela representava. Tirando as manhãs no colégio, o restante do meu dia era todo ele dedicado ao futebol. As tardes treinava sério na escolinha do Botafogo. Já as noites relaxava com os amigos de rua, jogando uma pelada sem compromisso. Sonhava com o dia em que, vestindo a camisa do Glorioso, marcaria meu primeiro gol no Maracanã.  Tudo isso, porém, mudou quando entrei em contato com meus instintos. O futebol teve de dividir espaço com seios, barrigas, cabelos, olhos, bundas e todo o resto que vem junto. E tudo o que tinha evitado inconscientemente até aquele momento, floresceu de forma assustadora.

Mas não, não fui cafajeste: não fiquei com as duas. A minha mudança não foi tão longe assim. Ainda guardava um senso de honestidade e coragem bem altos, que com o tempo haveria de diminuir, a leitora que vá logo se acostumando. Mas ali, vi que só tinha uma coisa a fazer. Refleti bastante após a saída de Ana e conclui que o mais correto era terminar com Fernanda. Sentia algo diferente pela vizinha do lado direito. Algo que nunca haveria de ter sentido até então. Era certo que pela diaba tudo o que sentia era uma bruta protuberância entre minhas coxas. Nada mais. Nossas conversas eram uma sucessão sem fim de novelas mexicanas mal acabadas. Só ela falava quando estávamos juntos. Pouca coisa eu ouvia, é certo. Só o que queria era aproveitar o momento acariciando suas torneadas coxas, passar levemente ou estrondosamente, dependendo de quantas pessoas estivessem ao redor, as mãos pelos seus seios e provar aqueles lábios ardentes. Nada mais, leitor e leitora. Reuni assim todo o meu estoque de coragem e o mais fresco suspiro de honestidade e fui ter com Fernanda uma conversa definitiva, na noite seguinte, em seu apartamento.

Não quis perder tempo. Por mais inocente que fosse nesse campo, sabia que quanto mais adiasse o inevitável, poderia ter problemas com Ana. E pensando assim que aportei na noite seguinte no apartamento da pobre diaba. Ela imaginava, com a sua mãe no trabalho, que teríamos mais uma noite de beijos e amassos no sofá da sala. Mudou a face, porém, quando disse que precisávamos conversar. E como remédio ruim, imaginei que se falasse tudo de uma vez, doeria menos. Olhei fixamente nos olhos dela e disse que não tínhamos nada em comum. Expliquei que pouco conversávamos sobre qualquer coisa que não envolvesse fofocas sobre as meninas do colégio, provas e algumas frases pornográficas ao pé do ouvido. O melhor, portanto, era terminarmos tudo logo de uma vez.

Disse assim de bate pronto, em um tiro curto e ágil. A idéia que planejei no caminho de casa até lá era que eu diria tudo aquilo, ela ficaria um tanto quanto zonza e eu daria adeus. Feito. Correria para os braços de Ana e ainda poderíamos contar as estrelas em mais uma noite regada a mangas doces e suculentas. O leitor não ria, eu era um perfeito idiota naquela época. Desses que acreditam na racionalidade por trás de todas as decisões e escolhas femininas. Fernanda ficou possessa com toda aquela conversa. Rangendo os dentes, perguntou o nome da ordinária. Queria que eu dissesse de qual turma era. Apontou assim de memória uns quatro ou cinco nomes de mulheres que estariam afim de mim. E prometeu que arrancaria os cabelos de uma delas, por se atrever a roubar o seu homem.

Fiquei atônito com a reação. Disse que era apenas falta de compatibilidade entre nós. Não havia ninguém. E sobre isso não menti, já que meu desconforto era real toda vez que ouvia o bla, bla, bla sobre as amigas e as fofocas da escola. Mas cometi mais um erro ao dizer que não era ninguém da escola. Então quem é, disse ela, já agora levantando o tom de voz. Se não era da escola, era da minha rua, cogitou; queria o nome das minhas vizinhas. Uma delas havia me roubado, já agora era enfática. Puta que pariu, pensei, em que merda que me meti. A diaba não engoliu o papo furado, na cabeça dela, de falta de  compatibilidade. E eu, sentado em sua frente, começava a me arrepender por ter entrado em um relacionamento que estava fadado desde o início ao fracasso completo. Todo homem deveria evitar entrar em algo que tenha como única e exclusiva motivação o sexo. E isso aprendi não sem dor. A diaba tinha toda a certeza que estava sendo trocada. Queria por que queria o nome da vagabunda, já a essa altura gritava para quem quisesse ouvir. Não era justo, dizia, depois de tudo o que vivemos. Nesse momento, quase ri, confesso, e cometi outro erro: o de discordar dela. A questionei dizendo que não tínhamos vivido nada demais: apenas alguns beijos e amassos. Esqueci dos ensinamentos do tio Afonso e aleguei que nos faltava química. Ela então, em um lampejo de desespero, pegou no meu membro e com o nariz colado no meu, disse suavemente: “você não sente essa química aqui!”. No impulso tirei a mão dela de lá. Disse que isso era outra estória e que uma coisa era a atração natural que sentiria por qualquer mulher, outra, completamente diferente, era ter o coração batendo mais forte toda vez que se vê alguém. Expliquei o frio na barriga, o olhar sem querer, o sorriso que acusa, mas deixa no ar algum tipo diferente de sentimento. Isso, definitivamente, nós não tínhamos.

Fernanda então, vendo que eu explicava algo que de fato estava sentindo, não por ela, mas por outra mulher, sentou no sofá. Colocou as duas mãos no rosto e usou o último recurso possível: começou a chorar. Chorava de forma copiosa. As lágrimas lhe manchavam a maquiagem e o rímel caia sobre sua face. Até então eu nunca havia visto uma menina daquela idade chorando de forma tão dramática. Muito menos tinha feito uma ter tal descompassamento. Senti no momento em que ela retirou as mãos do rosto uma leve pontada no peito. Um ir e vir sincronizado, no peito direito. Era o sintoma do remorso por tê-la feito estar ali, naquela posição tão vulnerável. Tinha assim minha segunda lição sobre as mulheres: como era difícil terminar um relacionamento. E mesmo um que simplesmente não existia. Era fruto solitário da mente daquela menina, com traços esporádicos de mulher, ali sentava à minha frente.

O aperto no peito acabou me fazendo recuar um pouco. Sentei ao seu lado no sofá. A abracei. Deixei que chorasse por muitos minutos. Não a interrompi em seu suplicio por nenhum instante. Apenas passei a mão pelos seus cabelos e a coloquei envolta em meu peitoral. A confortei como pude, achando que era a maneira mais honesta de fazer o que estava fazendo. Afinal, mesmo que nada existisse entre nós, me achei no dever de não tornar as coisas mais difíceis. Era, imaginei, o mais certo a fazer.

Fernanda, então, de possessa, pois se a vítima. Dizia que havia me escolhido muito antes daquela cena do banheiro. Acalentava em seu coração uma espécie de amor platônico, me olhando todos os dias cruzando a quadra da escola e me vendo sorrir toda vez que marcava um gol. A idéia do banheiro, dizia, teve há muito tempo atrás, mas a curtiu em banho Maria, tentando tomar coragem para executá-la. De tudo o que fez, não se arrependeu. Provocou meus instintos por saber que eu nem notara sua existência até então. A única coisa que uma mulher como ela poderia fazer era me tentar e assim, tão logo eu fosse tomado pela excitação natural da espécie, nós nos poderíamos conhecer melhor. E por isso, não cedeu naquela noite ensandecida, e em nenhuma das outras tentativas que fiz. Sabia que tão logo tivesse minha sede saciada, correria para os braços de outra. E mais outra, até dar conta de toda a arquibancada. Os homens, tinha toda a certeza, querem apenas o corpo das mulheres. E somente por isso, usou aquele artifício.

De tudo o que esperava acontecer naquela noite, isso que o leitor acabou de ler eu nem ao menos cogitei como possibilidade. Fernanda, para mim, era apenas uma moleca desenfreada, que usava e abusava de uma sensualidade aflorada para conquistar quem quisesse. E em alegando que eu nunca a notara, respondi já de pé e em posição bem ereta, que nunca imaginei que uma garota como ela, absolutamente linda, me daria bola. Eu era, expliquei, o tipo comum de menino, muito distante dos rostos bem tratados dos outros quase-modelos que existiam naquele colégio. Ela retrucou, porém, que para as coisas do coração não há muito que explicar e sim, apenas, sentir. E assim ficamos, por horas a fio, retrucando filosofias pessoais sobre o instinto carnal que nos uniu e o pretenso amor que ela sentia por mim.

Tudo o que eu retrucava, ela rebatia. As coisas que tentava explicar sobre não sentir passarinhos voando toda vez que a via, ela do outro lado da sala, impávida, refutava, agora sem lágrimas, minhas divagações, dizendo que isso nasce com o tempo. Por hora, dizia, o importante é que tínhamos uma puta química sexual e que poderíamos explorá-la de forma plena, se eu ainda estivesse afim. Meus argumentos, os poucos que tinha ensaiado para o momento, iam minguando a cada passada de ponteiro do imenso relógio que ficava na parede principal da pequena sala de Fernanda. A certa altura da agora conversa, em tom mais convencional, me senti como devem se sentir os soldados na guerra, quando seu estoque de munição está por um slot apenas de balas e tudo o que ele enxerga é a aproximação cada vez mais ligeira do inimigo.

Já havia dito tudo, enfim, que me havia preparado para dizer e a diaba travessa recuperou-se incrivelmente. Com o time desvanecido e a defesa completamente desorganizada, demonstrou uma profusão de reviravolta e me atacou com grande afinco. Parecia determinada a dar a volta por cima, sentindo que eu recuara, agora, em demasia. Já não tinha mais nada a dizer, verdade que era. E o caminho que entrei, o de tentar alguma argumentação plausível, na vã esperança de fazê-la sofrer menos só fez com que o término se alongasse mais do que deveria.

Não ai, nessa cena, mas muitos anos depois é que fui notar a importância do choro feminino. O tal último recurso, aquele que deixa qualquer homem desnorteado, é uma espécie de cavalo de tróia na batalha eterna dos sexos. Sem ele, já estaria longe, provavelmente nos braços do leitor sabe quem. Com ele, porém, o cansaço me foi tomando o corpo de assalto. E me senti como um lutador de boxe nas cordas, totalmente desguarnecido, tomando diretos de direita e de esquerda, apenas ao sabor do adversário. Ouvia sem reação os proclames da pobre diaba. Já estava combalido, sem munição, com armas dilaceradas, para tentar explicar mais alguma coisa. Ela, porém, parecia ter muitos aliados com poderosos recursos, tamanha era a carga de idéias e argumentos que demonstrava sem pestanejar. Já não havia, portanto, jeito de me safar sem usar qualquer comportamento que para mim seria xucro, mas que a essa altura, era meu último recurso.

 

- Fernanda, chega! – gritei, levantando as duas mãos – Acabou! Nós não temos mais nada.

 

Ela, então, vendo a mudança de tom no meu rosto, tentou vir para cima de mim ensaiando voltar ao tal recurso do choro. Pegou pelos meus braços, tentando me abraçar, dizendo que me amava e que não era justo o que eu estava fazendo. Mas fui ágil nesse instante e novamente gritei que tudo entre nós estava acabado, se é que algum dia havia existido. Libertei minhas mãos, impedindo que ela me abraçasse. A empurrei, então, levemente para o sofá e disse agora com tom menos agudo que tudo estava acabado, não deixando de olhá-la fixamente nos olhos, tentando encontrar neles algum resto de sobriedade e auto-estima. Vi ambos apenas de relance, quando ela me encarou de modo soberbo como se intimamente dissesse que não precisava de mim, pois assim como fez comigo, poderia conquistar qualquer outro homem, seja da escola, seja de outro lugar. Mas esse instante passou rápido e lá estava ela novamente colocando as mãos no rosto e se pondo a chorar.

Dessa vez, porém, mandei que as tropas incinerassem qualquer vestígio de animal traiçoeiro que entrasse em meu território. Dei as costas, atravessei ligeiro o pequeno corredor que ligava a sala à porta da frente e antes que ela pudesse vir a meu encontro, abri e fechei a porta, saindo com ar de recuo, mas já a essa altura, puto o suficiente para me arrepender de qualquer coisa que havia dito. Muito pelo contrário, tudo o que pensava era na maluquice das palavras que aquela garota havia proferido para mim. As frases que ela havia dito, como a que “me amava” e “tudo o que vivemos”, me pareciam uma encarnação da loucura epilética de Quincas Borba e sua ensandecida conclusão que se tornara Napoleão Bonaparte. Nada ali me era minimamente razoável de ser concebido como verdade. Afinal, tudo o que havíamos vivido, o leitor sabe bem disso, eram cenas memoráveis de descoberta do corpo de ambos. Nada mais nos foi dado por experiência. Foi isso o que pensei e que sussurrei no caminho do apartamento dela até minha casa. Em atos, sai desse caldeirão de loucuras, recorrendo a socos e pontapés no ar para libertar todo o meu descontentamento, e fui lentamente me dando conta da outra face daquela estória.

E foi assim que como numa ópera bem interpretada, saí do clímax em direção bem vagarosa a redenção. Quando o apartamento de Fernanda já me era razoavelmente distante, senti uma mudança radical por dentro. As pontadas no peito foram substituídas por uma inebriante excitação. Pensei em tudo o que estaria por vir na minha vida. O sonho de ser jogador sendo realizado, o namoro com Ana indo às vias de fato. Casaríamos, formaríamos família e, de certo, teríamos alguns filhos. Amigos viriam me visitar nas tardes de domingo para saborear um bom churrasco e conversar sobre os fatos da vida. A felicidade, imaginei – ou delirei, não sei ao certo – era para mim um caminho sem volta. Já ali não tinha dúvidas sobre isso. E o leitor, teria alguma?

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