O tema juro alto no Brasil volta em meia aparece na imprensa. Em tempo de eleições gerais no país, o tema tem sido recorrentemente abordado por jornalistas, candidatos e economistas. Como já disse em diversas oportunidades nesse espaço, existem três razões principais para que o juro de equilíbrio da economia brasileira seja elevado: o fiscal ruim, a poupança baixa e o crédito direcionado. Sobre esse último, a despeito de existirem diversos trabalhos mostrando sua relevância para explicar o juro mais alto no país, ainda há muito desconhecimento sobre a questão. Mesmo entre pessoas que deveriam entender sobre o assunto, como economistas e professores de economia. Nesse post, como no nosso Curso de Análise de Conjuntura usando o R, mostro como é possível verificar a expansão do crédito direcionado nos últimos anos no país.
A ideia é razoavelmente simples. Enquanto o crédito direcionado possui taxas de juros subsidiadas para alguns setores da economia, o crédito privado vai ter taxas de juros mais elevadas para todos os demais setores. Afinal, o Banco Central precisará aumentar mais os juros básicos para atingir o chamado crédito livre, que não atende a direcionamentos do setor público, para conter a demanda em tempos de contração monetária. Tudo, diga-se, previsto pela teoria da política monetária. Abaixo, ilustramos que a coisa só se agravou nos últimos anos, com o crédito direcionado saindo de 35% no início de 2007 para mais de 47% no último dado disponível, que é junho desse ano.
O gráfico é, a propósito, gerado no R (aprenda a usar R nos nossos Cursos Aplicados) com dados coletados diretamente do site do Banco Central com o pacote BETS. Ela dá uma dimensão sobre a presença do crédito direcionado na economia, ocupando hoje quase a metade de todo o crédito disponível no país. Somado ao elevado endividamento do setor público e a baixa poupança, o crédito direcionado nessas proporções explica por que temos um juro de equilíbrio tão alto, se comparado a países com mesmo nível de renda.
Atacar o problema, por suposto, implica em desmontar todo o sistema que está por trás desse número, composto basicamente por bancos públicos como BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. É uma tarefa díficil, que vai contra diversos interesses, principalmente daqueles que se beneficiem desse tipo de crédito direcionado. Mas, se o objetivo é ter um juro de equilíbrio mais baixo, é por aí que se deve caminhar...
Tenho sido repetitivo em minhas apresentações sobre o impacto dos empréstimos do BNDES na economia brasileira. De forma geral, mostro que a despeito dos quase R$ 500 bilhões que o Tesouro colocou no banco nos últimos anos, a taxa de investimento da economia brasileira não aumentou; ao contrário, diminuiu entre 2008 e 2014. Entender as razões pelas quais o investimento pouco reagiu ao aumento do crédito público passa pela compreensão do processo de crescimento econômico. Você pode saber sobre isso lendo o livro do professor Acemoglu. Mas o aumento do crédito público vis a vis o crédito privado gera um pouco mais de distorções sobre a economia. A concessão desse tipo de crédito não envolve, necessariamente, uma decisão técnica, mas por vezes questões políticas. Além disso, a ele estão associadas taxas de juros subsidiadas, que não respondem a mudanças na taxa básica de juros. Com efeito, o aumento da sua participação no crédito total acaba por "entupir" o canal de crédito, fazendo com que o Banco Central tenha que aumentar mais os juros para atingir a inflação. Nesse post vamos fazer um breve exercício que relaciona a expansão do crédito público à perda de eficiência da política monetária brasileira.
Avanço do endividamento público para financiar o BNDES.
Para fazer isso, achei que seria interessante, em primeiro lugar, decompor a parte do crédito que reage a taxa de juros e outra que não reage. Para tal, tomei emprestada a equação de Bolle (2010), da forma que segue:
(1)
A equação acima relaciona a variação em 12 meses do crédito total da economia a uma constante e aos juros reais, dados pela diferença entre a taxa básica de juros (Selic) e as expectativas de inflação 12 meses à frente. Desse modo, temos o crédito decomposto em duas partes: uma que é sensível aos juros reais e outro que não é (a constante). Os gráficos do crédito e dos juros reais são postos abaixo.
Antes de rodar a regressão, temos que ver se as séries são estacionárias. Pelos gráficos acima, parece que não são. Para confirmar, fiz uso do teste ADF Sequencial, conforme Pfaff (2008). As tabelas para a equação de teste com drift e tendência, com tendência e sem nenhum dos dois são postas abaixo.
Teste ADF com drift e tendência
dCred
Juros Reais
1pct
5pct
10pct
tau3
-1.927
-2.716
-3.990
-3.430
-3.130
phi2
3.098
2.519
6.220
4.750
4.070
phi3
4.641
3.778
8.430
6.490
5.470
Teste ADF com drift
dCred
Juros Reais
1pct
5pct
10pct
tau2
-1.156
-1.428
-3.460
-2.880
-2.570
phi1
0.674
1.020
6.520
4.630
3.810
Teste ADF sem drift e tendência
dCred
Juros Reais
1pct
5pct
10pct
tau1
-0.359
-0.662
-2.580
-1.950
-1.620
Observa-se que nas três equações do teste ADF não podemos rejeitar a hipótese nula de existência de raiz unitária. Faz-se, desse modo, o mesmo teste para a primeira diferença das séries, chegando à conclusão que ambas são integradas de ordem 1. Com efeito, podemos prosseguir com o exercício, tendo em mente a possibilidade de cointegração entre as séries.
Regressão para todo o intervalo da amostra
Em uma primeira regressão, pegamos todo o período da amostra, que vai de janeiro de 2003 a abril de 2015. Os resultados são postos abaixo.
Regressão para o período total
Dependent variable:
dCred
Juros Reais
-0.060
(0.123)
Constante
19.174***
(1.070)
Observations
148
R2
0.002
Adjusted R2
-0.005
Residual Std. Error
6.081 (df = 146)
F Statistic
0.239 (df = 1; 146)
Note:
*p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01
O resultado é frustrante, não é mesmo? Ao rodar a regressão para todo o período, nada se pode inferir sobre o comportamento da variação do crédito. Diante disso, e tendo em vista o avanço do crédito público, uma opção que pensei foi rodar a regressão até 2008, apenas para entender se os resultados frustrantes se manteriam ou, de outra forma, conseguiria um quadro melhor.
O mercado de crédito antes da "marolinha"...
A saída da regressão é posta abaixo:
Regressão entre 2003M01 e 2008M09
Dependent variable:
dCred
Juros Reais
-1.600***
(0.201)
Constante
37.779***
(2.319)
Observations
69
R2
0.487
Adjusted R2
0.479
Residual Std. Error
5.175 (df = 67)
F Statistic
63.622*** (df = 1; 67)
Note:
*p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01
Bem melhor, não? Antes de qualquer coisa, fazemos o teste ADF Sequencial, conforme Pfaff (2008), sobre os resíduos, conforme a tabela abaixo. Podemos rejeitar a hipótese nula, dada a comparação da estatística tau3 com os valores críticos. Isto é, os resíduos são estacionários e como as séries são integradas de ordem 1, temos evidências de que a variação do crédito e os juros reais são cointegrados, de modo que a regressão não é espúria. Você pode ver mais sobre isso em Enders (2009).
Teste ADF com drift e tendência
Resíduos
1pct
5pct
10pct
tau3
-4.202
-4.040
-3.450
-3.150
phi2
7.115
6.500
4.880
4.160
phi3
9.085
8.730
6.490
5.470
Nesses termos, observa-se que para o período entre janeiro de 2003 a setembro de 2008, a variação do crédito em 12 meses pode ser explicada pela constante - a parte insensível aos juros - e pelos juros reais. Ademais, o coeficiente dos juros reais é negativo, indicando que um aumento deste causa menor crescimento no crédito total. A parte insensível aos juros pode ser, desse modo, interpretada como a parte do crédito público, enquanto a parte que responde a juros reais é representada pelo crédito privado.
Ora, o que aconteceu com a relação entre variação do crédito total e juros reais?
De 2008 para cá, como podemos inferir a partir do primeiro gráfico, o BNDES foi bastante capitalizado pelo Tesouro. Além disso, o governo passou a incentivar tanto o Banco do Brasil quanto a Caixa Econômica Federal a aumentarem os empréstimos à pessoa física. Isso gerou mudança no mercado de crédito? Para ver isso, colocamos os dois gráficos a seguir, que mostram o crédito total dividido por tipo de controle e essa divisão em relação ao PIB.
O crédito público não apenas avançou de 2008 para cá, como acabou tomando a dianteira do crédito privado. Em outros termos, como o crédito hoje tem grande participação de instituições estatais, é possível entender melhor os resultados daquela regressão para o período todo da nossa amostra. Isto porque, o crédito público é insensível aos juros reais.
Para tornar a nossa compreensão sobre a relação entre variação do crédito total e juros reais melhor, uma última etapa do exercício compreende fazer a estimação recursiva, de modo a captar a evolução da relação. Começamos com uma amostra contendo 48 observações e vamos acrescentando cada nova observação à estimação. Com efeito, temos a evolução tanto da constante quanto dos juros reais. Mostramos abaixo o p-valor dos mesmos, de modo que o leitor passa a ter uma noção sobre quando os juros reais passaram a não se mais estatisticamente significativos.
A evolução do p-valor mostra que a partir de janeiro de 2014 o coeficiente dos juros reais passa a não ser mais estatisticamente significativo para explicar a variação do crédito total em 12 meses. Em outras palavras, esse exercício simples gera uma reflexão. Será que o aumento da participação do crédito público no crédito total reduziu a eficiência da política monetária? Ou, em outras palavras, será que o canal de crédito passou a responder menos a mudanças na taxa básica de juros? São questões importantes que estão colocadas e devem ser avaliadas com bastante cuidado.
A simplicidade do que fiz aqui não pode, claro, ser encarada como evidência definitiva, mas pode motivar estudos mais elaborados sobre o assunto. Dada a relevância do tema, acho importante que mais e mais economistas se envolvam na questão. E, para terminar, uma provocação: o seu economista favorito, que defendeu a expansão do BNDES nos últimos anos, o que pensa sobre o aumento de juros atual para controlar a inflação? Afinal, os juros saíram de 7,25% para 13,75% a.a. em termos nominais e a inflação de preços livres continua próxima a 7% a.a. Será que o crédito público que o seu economista favorito tanto defendeu tem algo a ver com isso? Não sei, deixo a resposta para você pensar... 🙂