O mito da conscientização social(*)

Os movimentos sociais e estudantis organizados tendem a dividir o mundo entre opressores e oprimidos. Acusam as grandes redes de televisão de promoverem alienação em massa, enquanto se autoproclamam os legítimos defensores dos fracos e ignorantes. Entretanto, ao utilizarem a expressão “conscientização social” acabam sendo eles mesmos manipuladores da opinião alheia.
É interessante perceber que, ao assumir a necessidade de conscientização social, esses movimentos estão pressupondo a existência de indivíduos ignorantes e/ou alienados. Define-se implicitamente, com esse pressuposto, que os conscientizadores membros dos movimentos organizados são esclarecidos quanto a realidade abstrata, enquanto os seus alvos potenciais não o seriam. Assim, aos esclarecidos caberia a nobre função de mostrar a “verdadeira luz da realidade” aos não-esclarecidos.
Ocorre que essa nobre função de dar consciência da realidade a pessoas supostamente alienadas e/ou ignorantes envolve uma sutil contradição em termos. Isto porque consciência é “o atributo pelo qual o homem pode conhecer e julgar sua própria realidade”. Ora, se a consciência em questão é dada pela figura do conscientizador esclarecido, nada impede que tanto o conhecimento quanto o julgamento da realidade sejam feitos conforme os valores do conscientizador. De fato, é assim mesmo que acontece. Nesse sentido, a suposta ignorância e/ou alienação iniciais não é superada, mas apenas redirecionada de acordo com os valores do conscientizador esclarecido.
Essa contradição em termos ocorre mesmo que, e a maioria dos movimentos organizados alega isso, seja dado o curso de todas as visões sobre determinado assunto. Isto porque, ao se predispor a repassar uma realidade a outro indivíduo, esta estará implicitamente contaminada pela interpretação do indivíduo que a repassa. Isso ocorre porque o homem é também objeto da realidade, não lhe cabendo portanto isenção de análise ou julgamento - por mais que o “analista” tente ser imparcial.
Em outros termos, qualquer tipo de interpretação da realidade é feita por indivíduos, dotados de valores e experiências diferenciados. Uma pessoa rica terá, necessariamente, uma opinião diferente sobre o tema “intervenções policiais em favelas” do que uma pessoa pobre. É uma implicação lógica e racionalmente justificável. Tais opiniões podem convergir na exceção, mas divergem na regra.
Dito isto, é totalmente passível de contestação o ato de conscientização social. Isto porque, a única evidência lógica existente no processo de conscientização é a de que o conjunto de julgamentos do conscientizador pode ser - e frequentemente é - transmitido para o indivíduo que supostamente estaria sendo esclarecido.
Sobre esse aspecto, o principal argumento dos movimentos organizados a favor de sua existência é justamente a idéia de opressão. Ou seja, os indivíduos seriam oprimidos porque são alienados e/ou ignorantes para perceberem a realidade que lhes cerca. Assim, como esses movimentos são dotados de uma virtude a priori, caberia a eles retirar o véu que cobre a face de trabalhadores e estudantes.
É justamente nesse paradoxo em que caem os integrantes dos movimentos pró-conscientização. Lutam contra supostos opressores e “inimigos do povo”, mas ao se autoproclamarem esclarecidos e dotados de certa virtude - implicitamente, como visto - acabam sendo eles mesmos, no limite do processo, os próprios opressores. A virtude e o esclarecimento a priori faz com que esses movimentos tendam a se sentirem, no decorrer do tempo, “guardiões da verdade”. Uma verdade única, libertadora, onde os fins acabam justificando os meios.
Não é por acaso que coube (e cabe) a esses movimentos, na história da humanidade, um número razoavelmente grande de atrocidades econômicas e sociais. Quando iniciam suas atividades até podem ter uma certa dose de razão ou justificativa de existência, mas ao longo do processo não conseguem fugir à lógica descrita. Chegam ao poder ou simplesmente alcançam suas reivindicações e acabam devirtuando-se. Por sentirem-se donos de uma verdade incontestável e, por isso, legítimos representantes do “povo oprimido”, acabam rompendo o limite entre a lei e a desordem.
Assim sendo, é pouco provável que a alienação e/ou ignorância iniciais, se essas de fato existirem, possam ser retiradas por um processo de conscientização social, gerenciadas por movimentos organizados. Seria mais interessante tentar modificar as instituições informais que fazem com que as pessoas joguem papel nas ruas brasileiras, por exemplo. O que causa essa e tantas outras deformações culturais? A resposta, e sobre isso parece existir consenso, está muito mais na construção de um sistema de educação básica completamente reformulado do que em meia dúzia de movimentos sociais/estudantis extremamente suspeitos.
(*) Texto escrito nos idos de 2008, mas que volto a publicar nesse espaço, dados os últimos acontecimentos no Brasil.

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