Diálogos com o Nepom: quebra estrutural no mercado de trabalho?

Na semana passada publiquei um post no qual chamava atenção para um exercício envolvendo séries de desemprego e geração líquida de vagas no mercado de trabalho. A ideia era tentar entender por que a "aderência" entre as duas séries se reduziu nos últimos anos. Chamei atenção para a possibilidade de haver uma quebra estrutural no mercado de trabalho brasileiro. O exercício e a possibilidade de quebra estrutural chamaram atenção do meu amigo Claudio Shikida, coordenador do Nepom e honorário detentor do blog De Gustibus - e que em um passado não tão distante conversou comigo e com o Renato Lerípio no Econometricks. Com os dados que lhe enviei, ele fez uma análise estatística das duas séries, não identificando nenhuma evidência de quebra estrutural aparente no comportamento delas. Desse modo, para dar continuidade ao debate, vou elucidar mais pormenorizadamente minhas preocupações, bem como avançar alguns décimos no trabalho de análise. Antes de tudo, as motivações...

Motivações iniciais do exercício ou o espantoso caso da taxa de desemprego que só cai...

Como tenho seguidamente chamado atenção nesse e em outros espaços, a despeito do baixo crescimento da economia brasileira nos últimos anos, a taxa de desemprego mantém-se em patamar muito baixo. As evidências retiradas das pesquisas sobre mercado de trabalho trazem alguma luz para entender esse "fenômeno". Em primeiro lugar, como escrevi aqui e aqui, existe uma correlação entre aumento de vagas em programas de qualificação (Pronatec, Fies e Prouni) e redução da população economicamente ativa (PEA) na faixa etária de 15 a 24 anos. Dado o aumento da renda familiar observada nos últimos 10 anos - captada pela PNAD e pela PME, por exemplo - os jovens têm adiado a entrada no mercado de trabalho. Menos gente procurando por emprego, menor é a geração de vagas necessária para estabilizar a taxa de desemprego. A tabela abaixo (clique para ampliar), montada a partir dos dados da PNAD Contínua, resume essa situação.

pnadcontinua

De fato, a menor procura por emprego tem sido observada na principal pesquisa sobre mercado de trabalho do país, a PME do IBGE. Entre 2003 e 2008 a PEA crescia 2,2% na comparação interanual, enquanto no período de 2009 até 2014 esse crescimento foi de 1,2%. Em algum grau esse menor crescimento da PEA reflete uma mudança demográfica, dado que a população em idade ativa (PIA) também viu seu crescimento se reduzir 0,5 pontos percentuais no período sublinhado: de 1,7% para 1,2%. Em outras palavras, a população brasileira estaria crescendo menos, o que tem impacto direto sobre a dinâmica do mercado de trabalho.

Nesse contexto, a soma de aumento da renda das famílias, com consequências para o "estudo sem trabalho" dos jovens, e menor crescimento da PIA sugerem que a procura por emprego tem sido menor no período recente. Esse resultado seria uma evidência para entender o porquê da menor geração de vagas, proporcionada por menor crescimento da economia, não ter pressionado a taxa de desemprego. Foi, inclusive, um dos principais temas de um amplo seminário promovido ano passado no IBRE-FGV: o efeito da demografia e dos programas do governo na redução da geração líquida de vagas necessária para estabilizar o desemprego. O gráfico abaixo resume o comportamento da correlação acumulada entre as séries de geração líquida de vagas (CAGED) e desemprego dessazonalizado (PME), acompanhada do crescimento da PEA.

correlacao2

A linha vermelha é a tendência da correlação entre desemprego na PME e geração líquida de vagas no CAGED, enquanto a linha azul é a tendência do crescimento da PEA. Ambas construídas pelo filtro HP. A inclinação da linha vermelha muda a partir de 2008, indicando que as séries de desemprego e geração líquida de vagas começam a perder desde então a "aderência" que se observava no período anterior. Ao longo desse período de mudança na linha vermelha, entretanto, a tendência do crescimento da PEA mantém-se estável, com maiores ou menores variações devido à maior ou menor expansão do produto. Apenas no início de 2012 a linha azul começa a mostrar sinais de queda.

A correlação entre desemprego e geração líquida começa, de fato, a se "perder" no início de 2009. Nesse ano a geração líquida cai devido aos efeitos da quebra do Lehman no final de 2008, enquanto o desemprego aumenta apenas até janeiro de 2009. Depois volta a mostrar queda. A geração se recupera no final de 2009, crescendo até o final de 2010 - dada a retomada do crescimento do PIB no período -, voltando a mostrar forte queda desde então. Em paralelo, após o pico registrado em janeiro de 2009, de 8,49%, a taxa de desemprego dessazonalizada continua a tendência de queda iniciada lá no início da série, em 2003.

Em palavras outras, com breves interrupções, a tendência da série de desemprego no período de 2003 a 2014 é de queda, o que pode ser visto mais claramente no gráfico abaixo.

desemprego03

A geração líquida de vagas, por seu turno, obedece aos ciclos de expansão e contração do nível de atividade, tendo o comportamento sugerido pelo gráfico abaixo.

saldocaged02

Em palavras outras, a queda persistente da taxa de desemprego parece ser um fato estrutural da economia brasileira. Desse modo, a queda da correlação entre geração líquida de vagas e desemprego pode estar refletindo um fato mais complexo do que a análise conjuntural nos permite enxergar. Foi justamente esse aspecto que chamei de quebra estrutural no mercado de trabalho brasileiro. Mesmo com baixo crescimento, a taxa de desemprego mantém seu curso de queda, com paradas transitórias e sem maiores transtornos a sua tendência.

Os problemas da análise empírica ou por que não é tão simples encontrar evidências para as hipóteses da vida?

Pois é. No mundo dos economistas sérios a vida é difícil, leitor amigo. A despeito de lidar com um fenômeno razoavelmente bem conhecido e reconhecido pelos profissionais da disciplina, não há até hoje um único artigo que trate pormenorizadamente do problema. Ao menos, eu ainda não encontrei esse que seria uma bela companhia para as noites de insônia. Isto ocorre porque não basta correlacionar A com B para colher evidências irrefutáveis sobre algo. É preciso ir além e isso, no mundo dos economistas sérios, envolve alguma econometria.

Com efeito, as coisas começam a complicar e se você não for estudante de economia é aqui que nos despedimos. Para minha tristeza, confesso, mas é pelo bem do Brasil, fico com essa desculpa esfarrapada - mas que talvez cole, dado que estamos a algumas semanas do evento mais importante para este país. Delimitado o problema que devemos atacar, reconhecido o público que se encaixa, vamos à análise dos dados.

Lá no início das nossas conversas, o Claudio chamou atenção para a não estacionariedade das séries de desemprego e da geração líquida de vagas. Como esse foi um ponto que não ficou muito claro até aqui, acho prudente retomar a discussão econométrica por ele. Desse modo, abaixo estão resumidos os testes de raiz unitária realizados sobre a série de desemprego dessazonalizado (clique para ampliar).

ru_desemprego

A presença de uma raiz unitária parece emergir dos testes realizados na série. Em palavras outras, a série não se comporta de forma aleatória em torno de uma média constante, não sendo desse modo estacionária. De fato, pelo gráfico da série colocado acima e como foi observado percebe-se que existe uma tendência de queda. De modo a não incorrer em problemas de regressão espúria, faz-se necessário diferenciar a série para torná-la estacionária. Novamente os testes indicam que isso deve ser feito uma única vez, dada a presença de uma raiz unitária, razão pela qual a série é considerada integrada de ordem 1, ou simplesmente I(1).

Esse comportamento, entretanto, bastante claro no gráfico, foi ponto pacífico na análise. A questão intrigante aqui era o comportamento da série de geração líquida de vagas, pelo CAGED. Os mesmos testes foram, então, aplicados à série.

ru_caged

Os testes mostram discordância entre existir ou não raiz unitária na série. Ou seja, é ou não é estacionária a série de geração líquida de vagas? A dúvida sobre ela ser estacionária ou necessitar ser diferenciada, ao menos uma vez, para tanto, nos faz perguntar sobre a relação entre a geração de vagas e o desemprego. Afinal, mesmo com a discussão aqui sendo tratada, espera-se que no longo prazo crescimento econômico e desemprego guardem relação. Desse modo, se ambas as séries forem integradas de ordem 1, podemos ver a possibilidade delas serem cointegradas.

Para isso, dois procedimentos muitos simples. O primeiro é regredir uma série contra a outra, em nível, via OLS, e verificar se os resíduos resultantes da regressão são estacionários. Se forem, recolhem-se evidências de que as séries são cointegradas. Isso é posto abaixo.

regressaosimples

E os respectivos testes de raiz unitária sobre os resíduos...

ru_residuos

Pois é. Usando esse procedimento simples, observa-se que os resíduos não são estacionários e, portanto, as séries não seriam cointegradas. Para complementar a análise, entretanto, segue-se o teste de Johansen, utilizando três defasagens, que emergiram de todos os critérios de informação do VAR entre as duas séries, e uma tendência linear nos dados.

johansen

Ao contrário do procedimento anterior, o teste de Johansen indica que as séries são cointegradas, o que no frigir dos ovos significa dizer que podemos trabalhar com elas em nível, sem o risco de incorrer em regressão espúria. Dois procedimentos, dois resultados, mais dúvidas do que propriamente certezas, não é mesmo?

A propósito do tema de cointegração, a correlação entre as séries em nível encontra-se entre -0,7 e -0,8 no período anterior a 2009. Como mostrado pelo Claudio em seu post, entretanto, essa correlação não se verifica quando tomamos as diferenças das séries. De fato, ao tratar o problema da estacionariedade, aquela paulatina perda de correlação entre as séries parece não fazer muito sentido. Desse modo, se as séries forem de fato cointegradas, podemos nos voltar para essa relação. Admitindo que elas sejam, regrido novamente uma contra a outra, adicionando um componente regressivo, dado que o desemprego (dessazonalizado) é claramente um processo AR(1) - a previsão da série sem ajuste sazonal é facilmente feita através de um (S)ARIMA - e modificando a defasagem do CAGED. Feito isto, observo a estabilidade do coeficiente relativo à geração líquida de vagas, via estimação recursiva. A saída da regressão e da estimação recursiva são mostrados abaixo - como exercício talvez seja interessante comparar a regressão acima com esta, apenas pela adição da defasagem do desemprego.

regressao02

recursivo

Retirado o "efeito Lula" que aparece em 2003 e 2004 - e que ocorre em praticamente todas as variáveis macroeconômicas brasileiras - alguma coisa acontece em 2009 que o parâmetro dá um pequeno salto. Ademais, o parâmetro não é estatisticamente significativo para explicar o desemprego, mesmo considerando outras defasagens que não a terceira.

O exercício é muito simples, não podendo gerar nenhuma conclusão a respeito. O "salto" pode ser uma mera consequência da quebra do Lehman no final de 2008, não refletindo nada do que estamos discutindo aqui. Por isso, nem me dei o trabalho de fazer um teste de quebra estrutural. Em palavras outras, o trabalho aqui registrado é muito inicial e  para encontrar evidências que deem respaldo a uma quebra estrutural no mercado de trabalho brasileiro é preciso avançar por outras direções.

Voltando ao início ou o que fazer daqui para frente

O problema continua, leitor, qual seja, o desemprego continua caindo, mesmo com o baixo crescimento da economia brasileira. A perda de relação entre as séries de desemprego e geração líquida de vagas pode, nesse contexto, ser uma mera consequência do "autismo" da primeira. Em palavras outras, dadas as características institucionais do mercado de trabalho e as questões aqui levantadas (menor crescimento da população, aumento da renda familiar no período, aumento da taxa de escolaridade dos mais jovens, programas de transferência de renda etc.), o desemprego brasileiro parece ter se acomodado em patamar menor. Como publiquei na sexta-feira, por exemplo, o desemprego deve continuar caindo ao longo dos próximos meses, não modificando assim aquela tendência mostrada pelo gráfico da série.

Nesse contexto, se o objetivo é avançar no tema, penso que primeiro devemos alinhar o campo de jogo. Como já ressaltei em outras oportunidades - e vivia tratando isso dentro do GECE - há diferenças metodológicas entre o CAGED e a PME. A primeira cobre todo o território nacional e trata apenas de trabalho privado formal, enquanto a segunda cobre apenas seis regiões metropolitanas e inclui trabalho formal, informal e do setor público. Logo, é preciso tornar as séries comparáveis. Estou fazendo isso nas minhas parcas horas vagas, a passo de cágado, quando deixo de me preocupar com o banco central brasileiro e com o Federal Reserve. Nesse processo, aliás, dependo da boa vontade dos burocratas de Brasília, que a toda hora me deixam na mão com o pitoresco sistema do Caged - mas, ema, ema, ema, cada qual com seus "pobremas".

Com isso feito, um próximo passo envolve modelar o desemprego. Como me referi anteriormente, prever o desemprego é relativamente simples porque ele tem uma memória muito grande. Mas para o que estamos pretendendo isso mais atrapalha do que propriamente ajuda. Afinal, precisamos colocar alguma proxy de crescimento econômico que explique o desemprego e ver onde essas coisas se perderam. A que utilizei aqui foi a geração líquida de vagas do CAGED, com os problemas metodológicos que ela possui.

Tentei utilizar um VAR com correção de erros, devido a um trabalho com inflação de serviços que estava desenvolvendo - e que rascunhei em algum comentário desses - mas nada de promissor surgiu. Desse modo, modelar o desemprego parece ser o caminho, ao menos até aqui. E tomare que isso não envolva voltar para antes de 2003, dado que houve mudança de metodologia, o que torna as coisas sensivelmente piores do que elas já estão.

Como se fosse uma conclusão

Eu espero que tanto o Claudio quanto outras pessoas continuem interessados no tema. A despeito de existir alguma coisa de diferente no mercado de trabalho brasileiro, nenhum artigo relevante sobre o tema foi publicado. A ciência, nesse caso, apenas tateia o problema, sem encontrar evidências robustas que sustentem o processo de queda contundente da taxa de desemprego. Eu me despeço por aqui, porque é dia de cozinhar feijão, já pedindo desculpas pelas bobagens que escrevi, mas espero que os diálogos continuem! 🙂

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