Notas de um óbito anunciado: regime de metas, descanse em paz!

O regime de metas de inflação no Brasil já claudicava há algum tempo, leitor. Sob a influência do purismo "svenssoniano", eu tomei consciência de que a ata da 155ª reunião (em dezembro de 2010) significava a entrada do paciente no hospital, exigindo cuidados intensivos. Foi nessa reunião que “o Comitê ressaltou que há certa equivalência entre ações macroprudenciais e ações convencionais de política monetária”, o cuidado com as expectativas me acendeu o alerta. A bem da verdade, o tripé - câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário - já havia sofrido internações cirúrgicas desde meados de 2010, quando a contabilidade criativa começava suas peripécias. Entretanto, ainda que mais por exercício de fé do que propriamente por ação racional, eu esperava que em algum momento os bons técnicos do Banco Central se realinhariam a boa teoria econômica, refazendo o caminho de volta para o centro da meta de inflação. Ledo engano, leitor.

A contabilidade criativa, uma bactéria presente na teoria econômica tropicalista, atacou o superávit primário, levando o tripé ao diagnóstico precoce de risco de vida. Sem maiores cuidados, a bactéria se alastrou, tomando conta do superávit primário, o pilar representativo da responsabilidade fiscal no regime de metas de inflação. Foi o primeiro a se ir. Tão logo foi possível, combinado com o marasmo do mercado de divisas, veio a intervenção no câmbio ao fim do primeiro semestre de 2012, fruto da confusão entre coisas endógenas e coisas exógenas que faz a teoria econômica tropicalista. O erro de diagnóstico causou piora no quadro geral do regime de metas de inflação, levando-o aos aparelhos.

Visando aliviar os sintomas da piora do regime, leia-se o baixo crescimento da economia dada a incerteza na condução do instrumento, tentou-se uma terapia alternativa: optou-se pelo afrouxamento monetário iniciado na reunião de agosto de 2011. A inflação efetiva, afinal, recuou para 4,9% em meados de 2012, mesmo após a taxa real de juros ter ido abaixo de 2%, em um ousado compromisso do governo federal com o discurso do "nunca antes". Os alternativos acharam, então, que o tratamento havia tido resultado. Precoce diagnóstico, entretanto.

Por dentro, o regime só piorava. Os desvios entre as expectativas de inflação dos agentes e a meta só faziam subir desde a quebra do Lehman, em setembro de 2008. Sinal contundente de que a credibilidade da autoridade monetária, a cuidadora por excelência do regime, sofreu abalo. Mas credibilidade, ainda que difícil de conquistar, pode estar sempre disponível, se o compromisso com a meta voltar a vigorar. Os problemas se acumulam, entretanto, é quando a ingerência sobre a condução do instrumento de política se torna mais nítida.

A credibilidade arranhada, os desvios entre expectativa e meta e inflação efetiva sofrendo com choques de oferta não combatidos juntaram-se à leviandade na 177ª reunião. Se há cabeças pensantes dentro do corpo técnico do Banco Central, ninguém duvida. Se essas cabeças tomam decisões, já são outros quinhentos. Se essas cabeças sabem o que é política fiscal neutra, ninguém duvida. Se essas cabeças podem criticar a contabilidade criativa, ninguém tem dúvidas igualmente de que não, não podem.

O regime de metas, então, leitor, esvaiu-se por nossos dedos. A meta de inflação, de 4,5%, é apenas um retrato na parede, que nos afronta quando olhamos mais detidamente. Nem em 2017 as expectativas dos agentes se alinham com esse retrato. Os agentes querem a inflação da realidade, aquela que, retiradas as desonerações, está na casa dos 7%. É para essa que olham, não para a fantasia dos 4,5% que o Banco Central não pode lhes entregar.

Nesse contexto, sem perspectiva de se tornar real, a meta caminha sozinha pelo pântano das ilusões, já sem seus dois companheiros, o superávit primário enclausurado por asfixiante contabilidade criativa e o câmbio com coleira de arranque. O regime, composto pelos três, não sobrevive sem suas pernas, posto que não tem forças para se alimentar das virtudes que combinados eles poderiam lhe proporcionar. Falece.

As evidências dessa morte já estavam dadas, por suposto. O regime entrava e saia de hospitais desde meados de 2010, aviltando alguma sobrevida. Mas a teoria econômica tropicalista dos atuais governantes acabou levando indubitavelmente a eutanasia do paciente. Nesse governo, com essas cabeças que lá estão, o regime, leitor, encontrou ambiente inóspito para sobreviver. Mas não com tristeza, posto que para eles o regime é como José Dias, o agregado de Machado, que todos querem logo  que se vá. Ousaria dizer que a eutanasia foi abertamente comemorada nos jardins do Palácio do Planalto? Arrisco-me a dizer que sim, houve fogos sendo disparados de lá.

E hoje, com a morte do regime de metas de inflação, como se configura o arranjo macroeconômico da república? Tem nome, inclusive: nova matriz macroeconômica. O que significa? Simples: a tudo cabe o direito de intervir. Em outras palavras, é proibido proibir a intervenção do governo. Os jardins da Praia Vermelha ou os salões nobres de Campinas celebram com afinco o fato de que os mecanismos não monetários de controle da inflação voltaram a uso. Bom uso, diga-se, representado por preços monitorados abaixo de 1,5%. Afinal, há muitas "inflações" para que apenas um instrumento, a taxa de juros, seja utilizada. A teoria econômica dos últimos vinte anos parece mesmo tão careta, não é mesmo?

É possível voltar, pergunto para fecharmos o óbito do regime. Será que ao fim do ano eleitoral, com o início da ressaca que será 2015, podemos ter o regime de metas ressuscitado? Acho pouco provável, leitor. Salvo uma coalizão de última hora, liderada por economistas bobões que acreditam em modelos de inspiração positivista, não vejo como o regime pode voltar do mundo dos mortos. E isso me deixa triste, confesso, posto que à política econômica atribui-se o peso da responsabilidade pelo crescimento do produto. Com a teoria econômica tropicalista desse governo, o regime adormece em outro mundo. Descanse em paz, após todos os serviços prestados ao Brasil.

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