As Concessões de Dilma

Não me esqueço, leitor, de como a imprensa divulgou amplamente a frase proferida pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: “esqueçam o que escrevi”. E como também muitos foram os pretensos intelectuais de esquerda que se decepcionaram com o seu governo. Perguntavam-se, atônitos, como um dos autores da teoria da dependência poderia ser um “entreguista”, um “privatista”? É que a arte de governar um país vai muito além do plano de ideias.

Não creia o leitor que teorias não sejam necessárias para fazer andar a máquina. O problema é quando elas a fazem parar. Fernando Henrique soube reconhecer as limitações da conjuntura e retroceder em suas próprias ideias. Não deve ser fácil para alguém acostumado à cátedra, silenciar suas próprias palavras. Quantos não são os que mesmo sabendo das incorreções agarram-se a pureza de suas teorias? Para um intelectual isso pode apenas ser excentricidade. Mas para um país...

O Brasil já se viu atrelado a muitos debates, polêmicas e contradições. A maioria delas inúteis, perdoe-me a franqueza. Ao invés de preocupar-se com prioridades, discutem-se migalhas. E já aqui, nesse tema tabu chamado privatização, não me parece que haja uma exceção. Inútil discutir se Dilma faz ou não privatização. Inútil taxar-lhe de privatista, entreguista, ou seja lá qual adjetivo pejorativo a Esquerda lhe jogará sob os ombros.

As Concessões de Dilma são isso mesmo, um reconhecimento de algo há muito sabido: falta competência básica dentro do Estado brasileiro. Faltam gestores públicos que entendam de projetos de grande porte. Não faltam recursos, desculpe o mais fervoroso direitista. O Estado brasileiro nunca esteve em melhor situação fiscal do que está hoje. A República nunca presenciou uma situação de endividamento público tão confortável. Mas entre o orçamento, o empenho, a liquidação e o pagamento vão se muitos contos de reis pelo ralo!

É essa a lição que se tira do “PAC das Concessões”, ou seja lá qual slogan o governo utilizará. Não me importa. O importante nisso tudo é que a Administração Dilma Rousself vai demonstrando coragem, mesmo que coberta de vergonha, em enfrentar os mais caros dogmas e ideologias do Partido. Não me admira que o funcionalismo esteja acampado na Esplanada, aos berros e gritos por aumentos salariais. Não me admira que gritem “Fora Dilma” e pensem até o impensável: reeleger o ex-presidente. Isso sim seria um tremendo retrocesso.

Dilma faz Concessões porque sabe que se o crescimento estancar sua popularidade vai junto e a reeleição... Nessa estória não há inocentes, leitor amigo. As Concessões de Dilma, com o perdão do trocadilho, não são para com o PT. Elas fazem parte de uma firme vontade de permanecer no poder. Afinal, a Presidente sabe que se o desemprego aumentar, lá se vai qualquer expectativa de projeto político mais vindouro.

Infelizmente é essa, não é outra, a motivação desse governo. Mas se cá chegamos, por tortas linhas, vejo que temos de aceitar. E agradecer. Em um passado nem tão distante assim, um Presidente rompeu com o FMI, apenas por querer realizar o “sonho da capital”. Já hoje, nosso país é um tanto quanto diferente. Já não aceitamos sem gritaria a emissão sem lastro para financiar o endividamento público. E a política econômica, apesar de errática e míope em muitos momentos, parece se render aos cânones da boa macroeconomia: there is no such thing as a free lunch.

Mas não pense você, leitor, que está tudo convergindo para um mundo plano, sem discussões e debates. Pelo contrário, já aqui, estamos nos sentando para discutir as coisas prioritárias. Após fazermos todas as coisas erradas, enfim parece que chegamos ao que importa. E já aqui entendemos que para reduzir os gargalos de nossa infraestrutura é preciso por a iniciativa privada no meio, mas regular de forma plena e austera suas ações. Entendemos também que a educação é importantíssima para se elevar a produtividade da economia. Mas há muito que se discutir.

Em primeiro lugar é preciso compreender que menor tarifa quase nunca significa retorno sobre investimento bem calculado. E isso só atrapalha o desenvolvimento de obras de infraestrutura. Precisaremos trabalhar muito nessa seara até chegar a um consenso sobre a melhor forma de licitar e, claro, de acompanhar as licitações. A lei atual é muito antiga e não dá mais conta dos avanços que se verificaram ao longo do tempo. Além disso, faz bem a Presidente em (querer) envolver a iniciativa privada de outros países. Uma concorrência internacional minimiza a existência já há muito conhecida dos conluios locais.

Como se vê, leitor, dado o consenso inicial, há muito que se fazer. Retirar a execução das mãos do Estado não o exime de suas funções, muito pelo contrário. O ato a que lhe cabe, regular, envolve uma série de questões que devem ser severamente trabalhadas e fortalecidas daqui por diante. Principalmente no que se refere a recursos humanos para acompanhar essas grandes obras. Não acredite na falácia tola e ingênua que diz que basta retirar das mãos do Estado para que a corrupção diminua. Você, como eu, sabe que isso é coisa de meia dúzia de pessoas que não se deu o trabalho de ler o manual.

Em assim sendo, as Concessões de Dilma são apenas o primeiro passo. Desanuveiam o terreno dos dogmas e ideologias, pavimentam as ruas do progresso e do aumento de competitividade. Mas em sendo um primeiro passo estarão sempre sujeitas a retrocessos. Não se engane: haverá muitos descontentes. E estes reuniram forças sempre que algo dê errado. Dilma será taxada de entreguista, traidora, privatista dentre outros termos pejorativos. Mas por que dar ouvido a essas pessoas? Parabéns Presidente pela coragem, mesmo que em tom róseo de vergonha.

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