Texto escrito em Outubro de 2008
Madrugada quente no Rio de Janeiro. Para distrair o vazio do quarto e a insônia que já me acompanha há anos, releio Dom Casmurro. Esbarro, como um bêbado em dia de ressaca, por mais de uma vez, com os “olhos oblíquos e dissimulados de Capitu”. Na primeira passo batido, assim como na segunda. Na terceira vez que releio essa passagem, entretanto, um raio cai em minha cabeça: penso na Ana.
Faz séculos que não penso nela. Aliás, nem sei ao certo se ela realmente fez parte da minha vida. Ana parece mais uma assombração que me persegue de tempos em tempos. Um nome que seca minha boca e não deixa um tostão de paz. Mas ao reler aqueles dizeres machadianos, os olhos de Ana me vêm a mente. Ao contrário dos olhos de Capitu, os de Ana são angelicais e sinceros, assim como o é a sua dona.
Após ter com os olhos de Ana, graça imaculada cheia de significado em minha existência, não consegui mais prestar atenção no livro de Machado. É sempre assim, caro leitor. Toda vez que essa mulher me vem ao pensamento, não consigo ter uma gota de paz em minha mente. Penso e repenso em nossos encontros, em nossos diálogos platônicos, em nossas peripécias juvenis. Dessa feita fiquei a registrar um meticuloso paralelo entre minha algoz e Capitu. Logo ela, a menina dissimulada e muito esperta do romance que estava a ler.
Capitu sempre soube o que queria: casar-se com o rico vizinho. Ana, pelo contrário, não tinha a menor noção do que queria ser quando deixasse o casulo e virasse uma bela borboleta. A dissimulada Capitu foi forjada dentro de uma realidade que se tornaria clássica no Brasil, já minha doce Ana é produto de uma sociedade patriarcal, que a despeito dos avanços urbanísticos deste país, ainda sobrevive na maior parte dos pampas gaúchos. O que quero com isso? Não te parece óbvio, leitor? Ana e Capitu foram trocadas na maternidade! És uma denúncia que o MP deveria apurar.
Capitu é contemporânea das mulheres que tudo sabem e tudo conquistam. As mulheres machadianas, a propósito do feito, são tão atuais que pregam uma peça na mulher pós-moderna, chamando-as descaradamente de desatualizas. Pornografia literária à parte, chamo atenção para o fato de que Machado deveria ter escrito sobre Ana, minha gaúcha com traços de anjo e ao mesmo tempo de demônio, que tanto me assombra.
Ana é a virgem que se casa por amor, Capitu é a vizinha prestes a se casar com o primeiro peralta rico que aparecer, como bem denuncia o astuto agregado. A primeira é ingênua e inocente, já a segunda é esperta e perspicaz. Não te parece, leitor amigo, que Capitu é muito mais desse século do que Ana?
Capitu está mais perto de mim do que a pobre Ana. Aquela está em minhas mãos, enquanto esta dorme o sono dos justos bem distante de mim. A verdade é que nos perdemos. O romance que planejávamos viver não passou de um livro. Uma espécie de redenção pela perda efêmera de um amor. Uma obra lida, fechada e deixada na estante. Resgatada de tempos em tempos, quando bate a saudade ou a lembrança dos teus olhos doces e sinceros é grande demais.
Ana, minha doce morena de cabelos encaracolados, assim apareceu para mim naquela madrugada quente do Rio de Janeiro. Foi Capitu, com seus olhos oblíquos e dissimulados, quem a libertou. Retirou sua lembrança da lixeira de minha mente e a pôs viva na minha frente. Não agradeci, pelo contrário, joguei Dom Casmurro pela janela. Às vezes minha relação com Machado é assim mesmo. Maldito mulato que consegue despertar as mais afogadas emoções em seus leitores. Mil vezes maldito! Tão maldito que não consigo ficar muito tempo sem lê-lo…